O presente artigo não visa esgotar toda a argumentação sobre o tema, mormente o espaço reduzido para tal.
A polêmica em torno da aplicação de multa em face do condutor que se nega a fazer o teste de alcoolemia através do aparelho etilômetro, denominado popularmente como “bafômetro”, parece estar longe de um entendimento pacífico.
Nem mesmo decisões judiciais tem entendimento pacífico sobre, o que dirá a sociedade, com ânimos acirrados sobre a questão do trânsito de nosso país, sobretudo quando envolve questões sentimentais e ideológicas, alimentados a todo instante por uma máquina midiática que é um verdadeiro cartel da opinião pública.
A questão é controversa na medida em que, de um lado, tenta-se a todo custo tomar medidas para que o trânsito se torne mais seguro, organizado, e que a rigidez da lei puna os infratores de forma exemplar, de outro lado, em um estado democrático de direito, a edição de leis e procedimentos por parte do estado ao arrepio de princípios fundamentais e constitucionais não podem prosperar, pois assim estaria abrindo brechas ao autoritarismo e desrespeito as garantias individuais dos cidadãos, abrindo precedente a todo tipo de barbáries por parte do estado, sob o velho argumento do “bem comum”.
Desde já esclarece que não se pode tratar de forma igual os desiguais.
Da análise da redação da nova Lei – art. 165-A, CTB[1] (recusar-se ao teste…), percebe-se que o legislador, ao ditar as formas de fiscalização e penalização, insistiu na coação à produção de prova contra si mesmo, passando a obrigar o condutor a se submeter aos testes e exames previstos, criando uma espécie de infração por equiparação.
Direto ao ponto, em artigo da lavra do doutrinador Guilherme de Souza NUCCI[2], que praticamente dispensa demais comentários, ensina (ainda quando da edição da LEI Nº 11.705, DE 19 DE JUNHO DE 2008, mas que se aplica de forma atual sobre as ultimas mudanças) que:
“Há dois postulados relevantes, que merecem inaugurar a abordagem sobre a edição da Lei 11.705
, de 19 de junho de 2008: a) os fins, por mais positivos que se possam apresentar, não justificam os meios, quando se tratam de direitos e garantias humanas fundamentais; b) no Estado Democrático de Direito, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Diante disso, não é demais concluir que parte da denominada Lei Seca é inconstitucional. (…)
Em outros termos, a Lei 11.275/06 permitiu a junção da fiscalização com a proteção ao indivíduo. O condutor de veículo automotor não pode dirigir sob a influência de álcool. Será submetido, querendo, a testes de alcoolemia, como o “bafômetro”. Recusando-se, o que é patente direito seu, a prova poderá ser obtida de outra forma, como, por exemplo, por testemunhas. Qualquer pessoa, em sã consciência, consegue detectar alguém embriagado ou sob influência de álcool ou entorpecente. Por outro lado, se o nível de ingestão for tão insignificante que ninguém consiga notar, certamente, nem mesmo se poderá considerar o condutor dirigindo sob influência de álcool. Não se pode estar sob influência de algo que ninguém consegue perceber.
Não poderia a polícia trabalhar com aquela redação do Código de Trânsito Brasileiro? O que impediria o trabalho de fiscalização? Poder-se-ia dizer que exigiria maior esforço e atenção dos policiais para detectar a pessoa que dirigisse sob influência do álcool. E, assim sendo, pode-se aduzir ser essa a função dos agentes do Estado: fiscalizar, respeitando os direitos humanos fundamentais. A união desses dois elementos sempre torna a tarefa mais custosa. Por isso, opta-se, no Brasil, pelo caminho mais simples: ferir direitos e garantias fundamentais. Tudo é feito para facilitar a ação dos agentes estatais, com o beneplácito da mídia, que, comprando a idéia, desencadeia a campanha nacional, pela TV, rádio, jornais e revistas, demonstrando as maravilhas da nova lei e a diminuição dos acidentes de trânsito. Fundando-se em estatísticas conseguidas rapidamente, sabe-se lá como, já se pode dizer que, a partir de junho de 2008 (pouco mais de um mês), estamos todos mais seguros no caótico trânsito brasileiro.
Porém, a Lei 11.705/08 não teve cautela alguma em massacrar direitos individuais. Alterou a redação dos §§ do art. 277 e inseriu as seguintes preciosidades:” § 2º. A infração prevista no art. 165 [dirigir sob influência de álcool] deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor[3] “(grifamos);” § 3º. Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo.” O caput prevê os testes invasores, como o “bafômetro” ou a coleta de sangue. A penalidade para quem dirige sob a influência de álcool, do art. 165 referido, é multa (cinco vezes)[4] cumulada com suspensão do direito de dirigir por doze meses.
Ora, se o § 2º menciona que o agente da fiscalização pode obter a caracterização da infração do art. 165 valendo-se de outras provas em direito admitidas, por que inserir o § 3º, que é a obrigação de se auto-acusar? A recusa em soprar o bafômetro enseja a imediata aplicação da sanção administrativa, ou seja, presume-se culpa, pois o condutor perderá a sua habilitação por um ano e pagará elevada multa. Eis aí a presunção de culpa e o dever de produzir prova contra si mesmo. A Lei 11.705/08 foi editada para facilitar o trabalho da fiscalização, sem o menor pudor em resguardar relevantes direitos e garantias fundamentais. Antes dela, o agente de trânsito já tinha condições plenas de fiscalizar quem dirigisse embriagado ou sob influência de álcool. Entretanto, poderia ter mais trabalho e haveria de agir com maior empenho e treinamento. Mas isso não soou importante para o Estado. Ao contrário, em qualquer área, mormente da segurança pública, prefere-se o caminho mais fácil. Aparelhar os órgãos estatais e treinar o seu pessoal são atividades muito mais custosas do que editar uma lei inconstitucional, voltada à sociedade brasileira, formada em grande parte por pessoas leigas e outras tantas analfabetas e ignorantes de seus direitos básicos. Contando, ainda, com o apoio da imprensa, sob o prisma de que os fins justificam os meios, está construída a armação para solapar a garantia da presunção de inocência e de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.”[grifos nossos]
Portanto, aqui é claro que não estamos a defender “homicidas” ao volante, mas, se trata de direitos individuais fundamentais garantidos ao cidadão, que não se confundem com as responsabilidades impostas a todos quando do cometimento de um ato ilícito ou a um dano a bem juridicamente protegido.
No mais, o estado dispõe de vários meios para a comprovação ou obtenção de provas no ato e que ao mesmo tempo não colidem necessariamente com os princípios da presunção de inocência e a não produção de prova contra si mesmo.
Relembrando, não se pode tratar de forma igual os desiguais. Não parece razoável equiparar aquele que toma uma simples taça de vinho e dirige normalmente ao que esta dirigindo totalmente embriagado e sob total influência da bebida e outras drogas, causando perigo ou danos a terceiros.
[1] Incluído pela Lei nº 13.281/2016.
[2] NUCCI, Guilherme de Souza. A Presunção de Inocência e a”Lei Seca“. Jornal Carta Forense, segunda-feira, 4 de agosto de 2008. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=2136.
[3] § 2º com nova redação dada pela Lei 12.760/12: “§ 2º A infração prevista no art. 165 também poderá ser caracterizada mediante imagem, vídeo, constatação de sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo CONTRAN, alteração da capacidade psicomotora ou produção de quaisquer outras provas em direito admitidas.”
[4] Recentemente agravada: “Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração – gravíssima; Penalidade – multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses. (Redação dada pela Lei nº 12.760, de 2012)”.