No Brasil, há quem não a julgue suficientemente “brasileira”. Mas foi ela quem levou à passarela aquele nosso jeito sexy de ser;
Gisele não tem a menor culpa de ter nascido linda, loira e com um trema no sobrenome, mas, ainda assim, neste Brasil de gente rabugenta e preconceituosa, incapaz, por burrice ou má-fé, de distinguir entre espírito crítico e histeria patológica, ela acaba, lado a lado com o orgulho nativo de ter produzido a top model número 1 do mundo, incorrendo igualmente na paradoxal ira e no incompreensível rancor daqueles que não a acham suficientemente “brasileira”. Como se o padrão de beleza “brasileiro” exigisse oderrière descomunal e a vulgaridade corporal das funkeiras com nome de fruta.
Steven Meisel, pelo menos, cujas lentes já clicaram nove entre dez tops, de russas a americanas, de suecas a argentinas, nunca teve dúvidas. Desde a primeira vez que se confrontou com a ainda menina Bündchen, o hoje coautor do livro que a consagra decretou: “É a volta da sexy model”. Padrão brasileiro ou internacional, o fato que é Gisele estava destinada a verter veneno por onde quer que andasse.
Aos 20 anos de carreira, aposentada das passarelas, mas não dos estúdios e dos ensaios, La Bündchen desfruta hoje da dádiva de um robusto pé-de-meia administrado com rigoroso profissionalismo (44 milhões de dólares de renda em 2014, segundo a Forbes), de uma família de anúncios de margarina – e nem sempre a salvo das intrigas dos invejosos – e daquela reputação singular que a faz candidata natural ao panteão do que se chama posteridade. Aos 35 anos, Gisele Bündchen é eterna.
E para ser eternizada, em definitivo, acaba de ganhar o direito de pousar na coffee table dos happy few, com livraço publicado por aquela Taschen encantada por imagens clássicas e ícones pop, dos Beatles a Bosch, de (Paul) Klee a (Frida) Khalo, de Elvis a (Lucian) Freud. As edições, uma em inglês, outra em português, com curadoria e direção de arte de Giovanni Bianco, reuniram mais de 300 imagens, espontâneo acervo do who’s who da melhor fotografia de arte de todo o mundo: David LaChapelle, Richard Avedon, Bruce Weber, Mert Alas & Marcus Piggott, Mario Testino, Helmut Newton, Steven Meisel e Irving Penn, que assina o elegante nu que ilustra a capa.
Este repórter teve uma única vez com ela, tête-à-tête, numa entrevista exclusiva para a Vogue dos bons tempos da família Carta (em contraste com a atual linha de montagem da Editora Globo). Descontada a cansativa experiência de compartilhar a atenção dela com uma cadelinha nervosa de nome Vida (que Deus a tenha), a presença de Gisele, sua atitude, sua postura, seu humor meio adolescente, seu jeito de moleca, extravasou para além daquele 1,79 metro de altura, preencheu o espaço, reiterou a dimensão do mito, mesmo sendo ela, no fundo, estudadamente contida, quem sabe até meio tímida.
Escrevi à época que talvez ela não seja a mulher mais bonita do mundo, nem a mais sexy. Sequer a mais carismática, se você define por personalidade carismática alguém dotado de certa turbulência íntima e de vocação para a encrenca, a exemplo de Kate Moss ou de Naomi Campbell, divas problemáticas da mesma geração de Gisele (“comparada com as duas, Gisele é a Madre Tereza de Calcutá”). Continuava: “Não chega a ser também uma modelo hype, como as que, de olhos borrados de kajal, parecem ter acabado de sair de um cabaré berlinense direto para as lentes sujinhas de Terry Richardson”.
É de outro estofo o fascínio que dela emana. Bicho mimético, que incendeia as câmeras em mil metamorfoses, o que a torna única, com sua beleza não esquemática, beleza digamos assim Gisele, digna de virar adjetivo seguido de interjeição. Ela é única porque, ao pisar na passarela, o que ela fez por duas décadas, era como se um feixe incandescente viesse iluminar suas passadas, relâmpago, flash, fenômeno de mulher com cumplicidade das forças da natureza – a química que subjuga a plateia, as leis da física incapazes de explicar que, quanto mais ela impunha seu galope à passarela, mais ela parecia flutuar em almofadas de penas de ganso.
Impossível não ceder ao feitiço daquele sorriso que parece buscar o concurso de uma centena de alvas madrepérolas, ao apelo cool e cult de uma simplicidade classuda, estilo e glamour, doçura juvenil e sofisticação adulta e, se não faltasse mais nada, aquela voz suavemente rouca de quem parece sussurrar coisas ao seu ouvido mesmo quando se trata de um mero comercial da Sky. Naquela noite, ela e Monica Monteiro – então sua agente – convidaram o entrevistador para jantar. Convite aceito, naturalmente. No mínimo, haveria de ser uma história a contar para o resto da vida.
Monica, zelando pela silhueta da pupila, alertou para um possível excesso de manteiga napastasciutta do restaurante escolhido, situado a poucas quadras do hotel, mas Gisele deixou-se levar mais pela gula do que pela balança. Como conheço o dono da fina trattoria, resolvi ligar para ele, discretamente, de forma a que recomendasse ao chef, aquela noite, mão mais branda no preparo da massa. O dono esnobou: “Ela vive lá, eles sabem o que fazer”. Disse que estava na praia e desligou, deixando no ar a suspeita de que o repórter aqui subscrito queria era se exibir, e não lhe fazer uma gentileza. Curiosamente, o ingresso da top model no restaurante não sugeriu que ela fosse tão habitué assim. De todo modo, omaître espertinho já veio avisando: “Fica tranquila, Gisele, o chef vai diminuir a manteiga”.
(O proprietário blasé não só telefonara lá do litoral para alertar a brigada como acabou aparecendo ao final do jantar, esfogueado pelo sol, com aquele clássico cashmere amarelinho jogado sobre os ombros, com planejada displicência.)
A moda é a tirania sádica do fugaz e do efêmero. Moda é aquilo que logo vai passar de moda. O momento Gisele na moda já dura 20 anos e não tem prazo de validade à vista. Mais de mil capas de revistas e 450 desfiles depois, ela chegou aos 35 anos e seu sucesso duradouro apoia-se na aparente contradição de quem, ao mesmo tempo que reduz seus méritos a “uma mistura de trabalho, destino e sorte”, dá sempre a quem tem o privilégio de chegar perto a nítida sensação de que ela está muito feliz em ser Gisele Bündchen.
Não fosse por mais nada, haveria de ser pelo fato de ter à sua espera, quando volta para casa, desde dezembro de 2006, aquele quarterback bonitão do New England Patriots, sabendo-se que quarterbacks bonitões sempre foram o sonho de consumo das loirinhas fogosas de todo college e toda high school na América (ainda por cima, Gisele fatura mais do que seu Tom Brady sem ter de enfrentar a pancadaria impiedosa doslinebackers do Dallas Cowboys). O casal tem dois filhos, Benjamin, que faz 6 anos em dezembro, e Vivian Lake, a caminho dos 3 anos.
A harmonia conjugal do casal perfeito foi abalada no primeiro semestre de 2015 por uma daquelas típicas intrigas de tabloide, sussurrando um suposto affair de Tom Brady com a babá da criançada. Se é que houve mesmo, a übermodel, ainda que gaúcha, relevou. Sempre blindada em sua privacidade, ela disse, na cautelosa entrevista por e-mail distribuída a propósito do lançamento do seu livro, que se a Gisele de hoje tivesse de dar algum conselho para a Gisele estreante, seria este: “Não leve nenhuma crítica para o lado pessoal”. Mas quem terá tido a deselegância de criticá-la, a não ser num surto incontrolável de inveja, ou com malicioso despeito?
Fonte: Carta Capital