Desde o início da polêmica nacional sobre a fosfoetanolamina sintética, em junho de 2015, a instituição já foi citada em mais de 13 mil processos movidos por pacientes que exigem o fornecimento da substância, acreditando tratar-se de uma cura para o câncer.
“Caímos numa armadilha”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo o vice-reitor da USP, Vahan Agopyan. “Estamos sendo obrigados pela Justiça a fornecer um produto que não sabemos o que é, não sabemos o que pode fazer nas pessoas, e está sendo produzido em condições totalmente inadequadas. É uma situação muito constrangedora.”
Os processos são tantos, segundo Vahan, que estão interferindo no funcionamento de toda a USP, e não apenas nas atividades do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), onde a substância é produzida de forma artesanal em um laboratório sem qualificação sanitária para produção de fármacos. “Nosso jurídico não está conseguindo atender às necessidades da universidade porque a maioria dos nossos procuradores está ocupada respondendo às demandas judiciais da fosfoetanolamina”, relata Vahan. “Vários processos importantes estão sendo prejudicados.”
A Procuradoria-Geral da USP chega a receber mais de cem processos de fosfoetanolamina por dia, oriundos de quase todos os Estados do País – e a universidade tem obrigação legal de responder a todos eles. Dos 13 mil processos, cerca de 7 mil são liminares concedidas por juízes do Estado de São Paulo, obrigando a universidade a fornecer a substância para pacientes com câncer. Cerca de 70% dessas liminares foram dadas por uma única juíza, Gabriela Müller Carioba Attanasio, da comarca de São Carlos.
Segundo a procuradora-geral da USP, Márcia Walquiria Batista dos Santos, 22 procuradores (de uma equipe de 46) estão trabalhando quase que em tempo integral com a fosfoetanolamina. “Outros assuntos importantíssimos para a universidade acabam ficando presos nesse fluxo”, afirma.
Dificuldades
Não bastasse o grande número de processos, muitos chegam à USP fora dos padrões, sem a documentação necessária e até faltando informações básicas, como o endereço do paciente para o qual as pílulas devem ser enviadas. “Nos deparamos com várias situações absurdas”, diz Márcia.
Como os processos se originam de vários Estados, com demandas específicas e protocolos distintos, não é possível dar uma resposta padrão a todos eles. Muitas ações são originárias de pequenas comarcas de regiões interioranas, que não têm sistemas informatizados. Outras exigem a presença física dos procuradores praticamente impossibilitando a USP de responder em tempo hábil. Todas as ações são contestadas, mas enquanto o processo não é julgado a USP tem obrigação de cumprir as liminares.
Alguns pacientes, insatisfeitos por não receber a substância no prazo esperado, obtêm mandados de busca e apreensão das pílulas no IQSC. “Chega um oficial de justiça lá, entra no laboratório e leva tudo que tiver embora”, descreve uma procuradora da universidade.
Segundo Márcia, a taxa de produção do laboratório é de 2,4 mil cápsulas de fosfoetanolamina sintética por semana – muito abaixo do que seria necessário para atender à demanda dos 13 mil processos. As liminares raramente estipulam uma quantidade que deve ser enviada ao paciente. Na maioria dos casos, fazem uma demanda genérica, como “o suficiente para o tratamento”. A regra da universidade nesses casos tem sido enviar um saquinho de 60 cápsulas por vez.
A única pessoa que produz a fosfoetanolamina é um funcionário do laboratório no IQSC, Salvador Claro Neto, que é um dos detentores da patente da substância, juntamente com o professor aposentado Gilberto Chierice e outras quatro pessoas. Durante anos eles produziram e distribuíram as pílulas gratuitamente para pacientes com câncer, tendo como base apenas alguns estudos preliminares em camundongos.
A substância, porém, nunca foi testada como medicamento e não há comprovação científica da sua segurança ou eficácia como terapia contra o câncer. A busca pelas pílulas é motivada por relatos pessoais de pacientes que tomaram a “droga” e dizem ter melhorado ou até mesmo se curado da doença.
A substância não tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), nem o laboratório – dedicado à pesquisa de óleos, resinas e polímeros, sem relação com a área biomédica – tem autorização para trabalhar com síntese de medicamentos. A diretoria do IQSC determinou o fim da produção em junho de 2014, mas a atividade precisou ser retomada para atender às demandas judiciais.
“Trata-se de um laboratório de química básica, sem condições adequadas para a produção de um remédio”, afirma Vahan. “Há grande risco de contaminação, e isso nos deixa extremamente preocupados.”
Segundo o vice-reitor, a USP não sabe nem a fórmula da substância, pois os pesquisadores registraram a patente sem a participação da universidade – o que contraria as regras de propriedade intelectual da instituição.