Mara Paraguassu
Um dos autores do hino da Banda do Vai Quem Quer, o compositor Silvio Santos, 69 anos, garante: tem muito gás para continuar brincando carnaval e defender a cultura popular na Amazônia, especialmente em Porto Velho. São 55 anos de música autoral. Tudo começou após assistir com a família um desfile de carnaval na avenida Presidente Dutra, numa terça-feira. Caiu forte chuva, e veio a inspiração. Tinha então 14 anos quando compôs a primeira marchinha. Silvio já compôs samba enredo para a Diplomatas do Samba, Unidos da Castanheira, Império do Samba, Pobres do Caiari, O Triângulo Não Morreu, Unidos da Rádio Farol, Acadêmicos do Armário Grande e Acadêmicos do São João Batista. O popular Zekatraca, menino humilde que aos cinco anos já trabalhava para ajudar a mãe viúva, conversou com o Amazônia da Gente na redação do jornal “Diário da Amazônia”, onde há 22 anos escreve a coluna de cultura Lenha na Fogueira:
AG: Você alcançou 55 anos de música autoral. O que te inspira na vida de compositor, durante tanto tempo, e o que te dá mais orgulho na trajetória?
Silvio Santos – O prazer de fazer música é uma coisa inexplicável. Mesmo antes de compor minha primeira música, costumava ficar tirando versos em cima de músicas que ouvia no rádio; colocava minha letra nas músicas dos outros, fazendo o que chamamos de gozação, brincadeira. Depois passei a compor minhas próprias músicas. Fico super emocionado ainda hoje ao ver milhares de pessoas cantando minhas marchinhas, como é o caso do hino da Banda do Vai Quem Quer e do samba Ceará de Iracema, composto para a escola de samba Pobres do Caiari.
AG: Quando você começou era mais fácil compor, fazer carnaval?
Silvio Santos – Tinha mais motivo, inspiração, e o carnaval era mais glamoroso, bacana, na linguagem popular. No meu caso, que comecei fazendo marchinha de carnaval e os blocos desfilavam com marchinha de frevo, não tinha samba enredo de escola de samba ainda, a gente saia brincando, sem ser samba enredo. Isso facilitou tanto que minha primeira marchinha que fiz foi assistindo o carnaval de 1960. Terça-feira de carnaval, na Presidente Dutra. Morava na Farquar, pertinho, e fui com a família assistir. Caiu uma chuva forte. Emil Gorayeb era o rei momo, estava no palanque. Chegando em casa fiz minha primeira marchinha. Era assim “a chuva quando cai molha a fantasia, deixa manchar, que estou na folia”. Eu tinha 14 anos. Mas eu só fui brincar carnaval de verdade em 1964, já na Pobres do Caiari, escola que ajudei a fundar, porque a mamãe não deixava. Ela era beata, católica, dizia que a festa era coisa do diabo. Até então eu ia para o Clube Ipiranga, perto de casa, e ficava só escutando os blocos, cercado de compositores.
AG: Havia mais blocos em Porto Velho do que hoje?
Silvio Santos – Sim, tinha muito mais. Eram ligados aos clubes sociais, dos categas, como eram chamados os funcionários públicos. Tinham os blocos do Bancrevea, do Ipiranga, Danubio Azul, Imperial, Guaporé. Escola de samba só tinha a do Bola Sete, criada em 1946. O Triangulo não Morreu surge em 1953, a Diplomatas do Samba em 1958 e a Pobres do Caiari em 1964. As mais antigas acabaram se incorporando a equipe do Diplomatas. Nosso carnaval de clube durou até o final da década de 60. Dona Marise (Castiel) era carnavalesca do clube Ipiranga, que cria a Pobres do Caiari, e dona Meire Azevedo era do Bancrevea, que vai para o Diplomatas. Essas duas já disputavam nos clubes sociais, o Ipiranga era azul, e o Bancrevea vermelho. Por isso que a Diplomatas do Samba é vermelha, e a Pobres do Caiari é azul. Antes delas não haviam cores nas escolas. Isso durou até o final da década de 80, início de 90.
AG: Quem não gosta de samba é mesmo ruim da cabeça ou doente do pé?
Silvio Santos – Claro que é! Como uma pessoa pode não gostar de samba? Nesse caso samba substitui a palavra música. As pessoas que não gostam de uma boa música, de um bom samba, só podem ser ruins da cabeça.
AG: Você começou a trabalhar menino. Trabalhar era diversão, fardo ou nem uma coisa nem outra?
Silvio Santos – Foi por necessidade mesmo. Perdi meu pai quando ainda ia completar quatro anos de idade e minha mãe ficou com a responsabilidade de sustentar meus irmãos e eu como filho mais velho do casamento da minha mãe com meu pai. Ele morreu em 1950, em Guajará-Mirim, para onde nos mudamos ao deixar o distrito de São Carlos, onde nasci. Em 1951 fomos para Porto Velho. Mamãe colocou banca de vender comida na feira livre que era em frente ao mercado municipal (hoje mercado cultural), e eu passei a ajudá-la. Carregava água para as banqueiras. Depois a feira foi para a rua do Coqueiro (hoje Euclides da Cunha) entre o prédio do SALFT (hoje Ceron) e sede do clube Internacional (hoje Ferroviário). Ali passei a vender mingau e saco feito com folha de saco de cimento. Minha infância foi toda trabalhando.
AG: Você entregava o dinheiro todo para sua mãe?
Silvio Santos – Entregava. Ela comprava roupa para mim e meus irmãos menores. Mas eu ficava danado porque eu ajudava e o filho mais velho, do primeiro casamento de meu pai, não trabalhava. A mamãe conseguiu uma bolsa de estudo com o bispo Dom João Costa para ele estudar no Dom Bosco e ele tinha vergonha. Ele dizia para os colegas que era filho de catega. Tinha vergonha de ser chamado de bolsista.
AG: Quantas composições até agora na carreira?
Silvio Santos – São muitas. Para você ter uma ideia, só na Banda do Vai quem Quer são mais de cinquenta músicas. O hit da banda é parceria com Babá e Manelão. Essa música surpreende. É cantada por milhares de pessoas. Outra música surpreendente é Ceará de Iracema. Lembro que em 90, na copa, o Brasil precisava ganhar do Zaire e ganhou. Eu morava no 4 de Janeiro. Peguei um ônibus lotado, sentei na última cadeira, e alguém puxou Ceará de Iracema e todo mundo cantou. Fiquei emocionado, chorei dentro do ônibus. Essas coisas gratificam a gente. Ver o povo cantando a música que você fez não tem preço. Várias fizeram sucesso com os Cobras do Forró. O reconhecimento emociona. Adauto Magalha, do Rio de Janeiro, grande compositor de sambas enredo, ficou meu fã e me convidou para ser parceiro. Nesse carnaval não deu, faltou tempo, mas no próximo quem sabe. Acredito que tenha feito mais de 300 composições ao todo.
AG: Você há muitos anos assina a mais prestigiada coluna de cultura, Lenha na Fogueira. Como iniciou a vida de colunista, e de onde vem Zekatraca?
Silvio Santos – Dei muita sorte na vida. Não dei para ganhar dinheiro (risos). Meu irmão Antônio, por parte de meu pai, era sonoplasta na Rádio Difusora do Guaporé. E ele levou o outro irmão, Bianor Santos, para ser locutor. O Padre Vitor Hugo levou Bianor para fundar a Rádio Caiari, e para lá fui como sonoplasta. Tinha 14 anos. Um detalhe: o Vitor Hugo pegou indevidamente a frequência da Difusora, que estava inativa. Liberaram a frequência para ele após um acordo com os Correios em que um programa de rádio deveria ser feito para ajudar a encontrar as pessoas. Em 61 passei a ser apresentador de programa, e fui nesse movimento até chegar em 86 e o Rochilmer me chamar para escrever uma coluna sobre carnaval para seu jornal, A Tribuna. Era para concorrer com a coluna do jornal “Estadão do Norte“, assinada por um tal de Pierrô Apaixonado, que ninguém sabia quem era, e depois descobrimos que era o Vinicius Danin. Eu também tinha de usar pseudônimo. Eu e Manelão tínhamos um bloco, o bloco do Zé Atraca, que estava parado. Conversando com Manelão, ele disse põe Zé Atraca para ficar eternizado. Daí ficou Zekatraca. Passou muito tempo e ninguém sabia que era eu, só quando fui para o Diário da Amazônia. Seu Hermínio colocou o título “Silvio Santos, mas pode me chamar de Zekatraca”. O Diário não tinha nem um ano de fundação, isso era em 94.
AG: Você é ribeirinho, militante da cultura, defensor do folclore, do carnaval, da cultura popular. Qual sua avaliação sobre a atenção do governo central para a Amazônia, especialmente para a cultura?
Silvio Santos – Falta muito o que fazer na região como um todo, na região Norte. Recentemente participei de um encontro em Pernambuco, como delegado popular. Já era o nono encontro e Rondônia esteve representado pela primeira vez. Nunca chamaram. Eu vi o quanto somos discriminados. Em relação ao Pará há mais consideração. Mas Amazonas, Rondônia e Acre são discriminados até mesmo no Ministério da Cultura. Falta mais divertimento, divulgação do nosso trabalho cultural, apoio. Eles pediram desculpas porque deixaram a gente de fora. Eu vejo descaso nacional com nossa cultura popular. Eles pensam que a Amazônia é só o boi-bumbá de Parintins, o Caprichoso e Garantido. Somos muito ricos em cultura. Porto Velho e Rondônia são ricos. A gente tem uma diversidade cultural, tem muita cultura para explorar. Porto Velho tem todas as culturas, e nossos governantes não veem isso como investimento, um atrativo turístico para explorar, não ligam para o nosso patrimônio histórico, imaterial, a EFFM, a Festa do Divino Espirito Santo e outras manifestações.
AG: Diante das dificuldades de fazer cultura, já teve vontade de ir embora de Porto Velho?
Silvio Santos – Não, nunca tive vontade ir embora, mesmo. Gostaria de ter oportunidade de ajudar os grupos folclóricos e a cultura de modo geral provando, aliás já mostrei, falta ser compreendido, que fazer cultura não é gasto, é investimento. A gente só consegue tirar a juventude das pragas da marginalidade e das drogas através da cultura e educação. Se não investir nas duas áreas, é caso perdido. Pode botar dinheiro em qualquer setor do governo, principalmente na segurança pública, que não vai dar certo. Porque o cara não tem educação, a cultura dele é a marginalidade. Tem que ter olhar mais positivo para os movimentos culturais do nosso estado e da nossa cidade principalmente.
AG: Você trabalhou no jornal “Alto Madeira.” Como foi parar lá?
Silvio Santos – Quando eu tinha de 11 para 12 anos, meu irmão Antônio trabalhava no Alto Madeira como tipografo. Eu era muito traquino, menino de rua, e a mamãe não aguentava minhas paradas. Ela pediu para Antônio arranjar algo no jornal. Ele conseguiu para mim ser office boy; eu varria o jornal, chegava seis da manhã para dobrar os jornais e distribuir cedo. E quando chegava da rua, ia para a oficina aprender o oficio de tipografo. Lá só tinha craque, o Petrônio de Almeida Gonçalves, seu Celso, o João Tavares, Paulo Machado, Antônio, José Guedes, o famoso Velho Boy, chefe da impressão, foi com essa turma que aprendi. E com o editor, seu Arnaldo, chamado de pombo branco, porque só usava roupa branca. O Alto Madeira era o ponto de intelectuais da cidade. Dei sorte, porque se não é meu irmão eu ia continuar na feira, e quem sabe me transformado em marginal. Eu era um menino briguento. Os banqueiros que vendiam cereais sabiam do meu temperamento. Então, quando um desconhecido, um estranho chegava na feira, eles chamavam o Buchudo, era meu apelido, e ofereciam cinco cruzeiros para dar um tapa no forasteiro. Eu ia lá e fazia. Não queria nem saber, queria ganhar meu dinheiro. Poderia ter me metido numa enrascada.
AG: Dá para ganhar dinheiro como compositor?
Silvio Santos – Estou vivendo. O que tenho ou tive vem da música, do meu trabalho no jornal, como funcionário público concursado deste o início dos anos 80. Gente como eu, que não aceita certas coisas, não ganha muito dinheiro. Oportunidade tive muita. Minha área sempre foi cultural, e fui convidado para cargos importantes, mas isso entendi como uma forma de me manter calado. Já recebi ameaças, tive conflitos, e sai em defesa dos integrantes da Federação das Escolas de Samba quando foram acusados de roubar do governo para fazer carnaval.
AG: Você foi dirigente da Federação das Escolas de Samba?
Silvio Santos – Criei a Associação das Escolas de Samba em 89, fiquei três mandatos, e o Cabeleira criou a federação em 2002. Depois dele fui presidente dois mandatos da Federação, e parei. De uns tempos para cá a coisa apertou muito, é muito controle, burocracia, o Tribunal de Contas, e não tem quem não esteja, de algum modo, respondendo por alguma coisa. Hoje eu participo das discussões, assessoro as federações de escolas de samba e a de folclore, pertenço à diretoria, mas não quero mais ser presidente. Meu negócio é trabalhar pela cultura, não sei fazer outra coisa.
AG: Ainda há disposição para isso?
Silvio Santos – Sim. Com 69 anos ainda tenho gás para brincar carnaval, brigar com os caras. Uma vez eu coloquei na Lenha na Fogueira que não tinha gratificação no governo porque era do Diário da Amazônia, e não tinha bom salário no jornal porque era do governo. Coloquei mesmo. É verdade. Por eu não aceitar, ninguém faz questão do Silvio Santos. É melhor o Silvio longe do que perto.
Foto principal: J. Gomes
Capa do Diário da Amazônia – 23 de fevereiro de 2016