João (nome fictício) tinha seis anos de idade e estava no segundo ano do Ensino Fundamental quando os pais descobriram que ele sofria agressões na escola. Pelo fato de ser novo no colégio, além de uma criança interessada e questionadora, passou a ser hostilizado pelos colegas, rejeição que chegou a agressões como chutes e arranhões. Com o objetivo de combater esse tipo de violência – física e psicológica – foi editada a Lei Federal nº 13.185/2015, em vigor desde 9 de fevereiro no País.
A lei institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática – o bullying – e determina que estabelecimentos de ensino, clubes e agremiações recreativas assegurem medidas de conscientização, prevenção, diagnóstico e combate à violência. O texto considera como bullying a prática de ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidar ou agredir, causando dor e angústia à vítima. A lei também destaca a prática do cyberbullying, configurado quando se utiliza a internet para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais, com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial.
Em relação ao caso de João, em que a intimidação sistemática é evidente, a mãe conta que se culpa por não ter percebido o problema antes. Ela afirma que apenas levou as reclamações do filho a sério a partir do momento que se tornaram recorrentes e perceptíveis por meio de sinais físicos. “Ele falava todos os dias que estava ficando muito nervoso, por causa dos xingamentos e gritos dos colegas, que também batiam nele. Diziam a todo momento que ele era bagunceiro, que não deixava a professora falar e chegaram a arranhá-lo no peito por isso”, recorda. A mãe afirma que passou a procurar a diretoria do colégio para saber o que estava acontecendo, mas nunca recebia o retorno necessário. No dia em que o filho foi agredido com chutes, após ser derrubado no chão pelos companheiros de turma, a mãe decidiu mudá-lo de escola. “Hoje, no novo colégio, João não é mais hostilizado, está feliz, tem muitos amigos e foi o aluno destaque do quarto ano”, enfatiza.
De acordo com o procurador de Justiça Murillo José Digiácomo, coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça (Caop) da Criança e do Adolescente e da Educação, é diante de situações como a de João que a nova lei torna obrigatória a tomada de providências no sentido de conscientização, prevenção, diagnóstico e enfrentamento do problema. “O que antes era um tabu agora terá de ser uma preocupação permanente das escolas – e de outros espaços frequentados por crianças e adolescentes –, que terão de desenvolver ações concretas em relação à matéria.” O procurador de Justiça afirma ainda que é fundamental que pais e educadores debatam o tema com as crianças e adolescentes, estejam atentos aos sinais de que o fenômeno está ocorrendo e cobrem das instituições de ensino e do Poder Público a implementação das ações previstas em lei.
Prevenção e repressão – A Lei nº 13.185/2015 prevê a realização de campanhas educativas, a capacitação de docentes e equipes pedagógicas para a implementação de ações de discussão, prevenção, e solução do problema, além da integração entre sociedade, escolas e meios de comunicação como forma de combater o bullying. Além disso, institui a promoção de medidas de conscientização e prevenção de todos os tipos de violência, com ênfase nas práticas recorrentes de intimidação sistemática ou constrangimento físico e psicológico, cometidas por alunos, professores e outros profissionais integrantes da comunidade escolar.
A promotora de Justiça Hirmínia Dorigan de Matos Diniz, que também atua no Caop da Criança e do Adolescente e da Educação, afirma que o objetivo da lei é prevenir o conflito, privilegiando alternativas que promovam a mudança de comportamento hostil. Ela explica que a punição não é o foco, uma vez que já existe a tipificação penal para as práticas que configuram o bullying e que a lei vem para promover entre as pessoas a cultura de paz, o respeito, a tolerância e a prática da cidadania.
Murillo Digiácomo compartilha da mesma opinião e informa que, dependendo do caso, a punição do agressor pode ocorrer com base em outras leis, como o Código Penal ou o Estatuto da Criança e do Adolescente. “No entanto, a lei considera que mais importante que punir é conscientizar e tomar providências concretas para a mudança de conduta por parte de todos os envolvidos com o problema, seja na condição de autores, seja na condição de vítimas”, analisa. Para que isso ocorra, Murillo declara que é fundamental que o Poder Público desenvolva uma política que contemple mecanismos previstos na lei, como a capacitação de profissionais e o desenvolvimento de campanhas de conscientização, em caráter permanente, o que implica planejamento e investimento de recursos públicos.
Contudo, o procurador de Justiça salienta que o bullying pode caracterizar uma série de infrações penais, como injúria, difamação, ameaça e lesão corporal. Tais condutas podem resultar na instauração de procedimentos investigatórios no âmbito da Polícia Civil, demandas judiciais (inclusive de cunho indenizatório às vítimas) e responsabilização dos pais de crianças ou adolescentes autores. Murillo também reforça que a Lei nº 12.594/2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), já previa a instituição de meios de autocomposição de conflitos e práticas e medidas restaurativas, que se adequam perfeitamente aos casos de bullying.
Ocorrências mais comuns – Segundo informações da cartilha Projeto Justiça nas Escolas, editada pelo Conselho Nacional de Justiça, os casos mais comuns de bullying estão relacionados à situação socioeconômica das vítimas, à idade, ao porte físico ou ocorrem até porque as vítimas estão numericamente desfavoráveis. Além disso, crianças e adolescentes podem ser agredidos pelo fato de serem tímidos, introspectivos, estudiosos, ou ainda pela religião, raça ou orientação sexual. “Não há justificativas plausíveis para a escolha, mas certamente os alvos são aqueles que não conseguem fazer frente às agressões sofridas”, diz o texto.
Ainda de acordo com a cartilha, os agressores procuram nas ações egoístas e maldosas um meio de adquirir poder e status, e muitos se comportam assim por uma nítida falta de limites em seus processos educacionais no contexto familiar.
Além disso, promotora de Justiça Hirmínia Diniz conta que alunos com deficiência física ou mental também são vítimas de bullying praticado pelos colegas, sendo discriminados às vezes pelos próprios professores. “Há também situações em que o professor hostiliza a criança que é agitada ou apresenta dificuldades de aprendizagem”, diz. Denúncias de discriminação no ambiente escolar pela condição social também são constantes, além de ocorrências de rejeição pelo modo de alguém falar ou se vestir. “Recentemente atendemos uma estudante de curso técnico, oriunda de um estado da Região Nordeste, que foi agredida psicologicamente pelos colegas, devido ao seu sotaque e às roupas que usava”, conta.
O caso de João é também um exemplo de discriminação institucionalizada, quando, de acordo com Hirmínia, parte da própria escola. A mãe do menino relata que ele era hostilizado pela diretoria e pelos professores, que o tratavam com indiferença. “Não é toda escola que está preparada para lidar com a diversidade”, observa a mãe. Ela comenta que o filho era rotulado pela instituição, que deixava explícito que João não fazia parte daquele contexto. “Nesse período, meu filho perdeu a identidade e tornou-se aquilo que a escola dizia que ele era: bagunceiro, falador, chato. A culpa das ocorrências era sempre dele e não era interessante para a unidade que continuasse a estudar lá.”
Sinais – Dentre as mudanças de comportamento mais comuns apresentadas por quem sofre o bullying, Hirmínia aponta as faltas repetidas às aulas, a evasão escolar, o insucesso no processo de aprendizagem por meio de reprovações e o baixo rendimento escolar pela falta de autoestima. Ela destaca que, em muitos casos, as vítimas precisam de acompanhamento psicoterápico, o que também se aplica à pessoa que pratica o bullying, já que é vítima de um sistema social: “Se, para ela, ser popular, ter dinheiro e ter beleza é fundamental, isso pode refletir em sua personalidade no futuro de maneira muito forte. Além disso, o agressor pode ser alvo de medidas protetivas e educativas”, destaca. A promotora de Justiça acrescenta que a falta de tomada de medidas adequadas por parte da escola também configura uma forma de participação da prática. “A omissão deve ser tão combatida quanto a ação censurável.”
Para a psicopedagoga e professora de Psicologia da PUC-PR Evelise Portilho, o bullying tem muito a ver com as diferenças e visa desmerecer o outro. A maneira de se referir à pessoa é perversa, inibe e machuca. É toda abordagem que deixa a vítima acuada e fere sua condição de pessoa, assim como seu direito de se expor e de se colocar. Ela esclarece que o bullying é diferente de uma implicância, um xingamento ou de uma brincadeira maldosa, atitudes que não impedem o outro de continuar agindo.
Ainda citando como exemplo a história de João, a mãe relata que, a partir das agressões sofridas, o filho pedia a todo momento para sair do colégio, tornou-se uma criança mais agressiva e estressada em casa e não conseguia dormir direito durante a noite. “Além disso, o desempenho das últimas provas realizadas na escola foi muito ruim e meu filho não tinha motivação para nada. Hoje, em outra instituição de ensino, o João é uma criança que tem muitos amigos, que se destaca na turma como um bom aluno e que se sente parte do ambiente. Ele está feliz”, afirma. Apesar da melhora, a mãe de João revela que tocar no assunto ainda faz mal ao filho e que ela carrega até hoje a culpa de não ter percebido antes a situação.
Ausência de limites – Evelise sustenta que o bullying está relacionado principalmente a valores de uma sociedade que privilegia uns em detrimento de outros e também à importância da conquista de espaço nesse contexto. A psicopedagoga vai além e afirma que o problema também tem suas origens em uma sociedade sem limites, em que a escola e a família vêm perdendo seu papel e sua identidade.
“Pais e professores estão muito passivos diante das atitudes e das relações de seus filhos e alunos”, destaca a psicopedagoga. “Na sala de aula, por exemplo, o professor sente-se cada vez mais acuado e impedido de repreender um aluno, devido à pressão que sofre por parte das famílias e de outros segmentos da sociedade. E essa pressão é sentida pelos pais também”. Segundo Evelise, os adultos não podem ficar apáticos e têm a obrigação de interferir quando necessário, com o objetivo de educar. “Afinal, esse é o papel da escola e da família.”
Além da questão cultural, porém, Evelise ressalta que a causa do problema pode estar ligada ao caráter do sujeito ou ao ambiente em que está inserido: “Os valores da cultura institucional da casa e do trabalho, por exemplo, podem levar uma pessoa ou um grupo a agir de maneira agressiva em relação ao outro”, explica.
Nesse contexto, de acordo com Evelise, a intervenção por parte dos adultos tem que acontecer no momento exato em que o bullying é praticado, caso contrário a situação transforma-se em uma “bola de neve”. “Quando se adotam atitudes permissivas, as consequências para quem sofre a agressão podem ser graves e marcar a vida da pessoa para sempre”, ressalta. Ainda segundo a psicopedagoga, há casos em que crianças ou adolescentes tendem a se isolar, tornam-se mais agressivos em casa, não querem sair e não têm interesse de se relacionar com ninguém. Ela acrescenta que muitas vezes o aluno tem dificuldade de aprendizagem e, por esse motivo, é agredido pelos colegas e até pelos próprios professores. “Ele sente-se oprimido, incapaz e no futuro pode apresentar dificuldades no desenvolvimento profissional”, aponta.
Diálogo para mudar – Para combater a prática do bullying, Evelise argumenta que é fundamental que a família, a escola e a sociedade falem sobre o assunto com as crianças e os adolescentes. Para ela, é preciso dialogar, interferir e os pais têm de acompanhar os filhos, serem presentes, interessarem-se pelo que pensam e posicionarem-se junto com eles diante da realidade. “Como posso educar, se não promovo reflexões sobre o tema?”, questiona. “A transformação não vem do nada.”
Murillo Digiácomo propõe o mesmo e complementa que é preciso esclarecer, desde o início, que o fato de ser vítima de bullying não é motivo de vergonha e que a única forma de resolver o problema é deixar que a situação venha à tona. Ele reforça que para isso é fundamental o desenvolvimento de uma relação de proximidade e confiança entre pais e filhos e educadores e educandos.
A diretora pedagógica Gisele Mantovani Pinheiro desenvolve um programa de combate ao bullying na escola onde trabalha, em Curitiba. A iniciativa começou há cinco anos, com o objetivo de acabar com as situações que vinham ocorrendo na unidade. “Apesar de se tratarem de casos aparentemente inofensivos, como a criação de apelidos para os colegas, vimos a importância de impedi-los rapidamente, antes que se tornassem graves”, expõe a diretora.
Ela explica que o programa é realizado desde a Educação Básica até o último ano do Ensino Fundamental e trabalha as diferenças entre as pessoas, o jeito de ser de cada um, por meio de atividades baseadas no diálogo. “A intenção é que os alunos entendam que as diferenças são naturais na sala de aula, na família, na sociedade, e que não é a cor da pele, o cabelo, a raça, os óculos, o peso ou a altura de alguém que definem se ele é legal ou não, se pode fazer parte de um grupo ou não, se é capaz ou não”, reflete.
Avanços – Um dos avanços trazidos pela lei federal, conforme afirma Hirmínia Diniz, é a determinação para que as instituições de ensino de estados e municípios produzam e publiquem relatórios bimestrais com a relação de ocorrências de intimidação sistemática, iniciativa que vai contribuir para o planejamento de ações estratégicas.
Ela ressalta também que, desde 2012, o estado do Paraná já possui a Lei nº 17.335 para a prevenção da prática do bullying e que a medida prevê alguns pontos importantes não abordados pela lei federal. O primeiro deles é a participação da comunidade no processo, para que as ações de prevenção irradiem para fora do ambiente escolar. A outra peculiaridade apresentada é a possibilidade de criação de um órgão específico para recepcionar as denúncias de agressões. Além disso, Curitiba possui ainda a Lei Municipal nº 13.632/2010, que visa reduzir os casos de bullying dentro e fora das escolas. Veja o quadro comparativo.
Sobre a nova lei federal, Murillo Digiácomo afirma que a medida deve mudar a forma de atuação das instituições de ensino e do Poder Público, que não podem mais permanecer passivos diante do problema e tentar transferir a responsabilidade da solução apenas para a Justiça, por meio da simples instituição de mecanismos punitivos. Ele ressalta que, “embora a punição – seja por meio do Código Penal ou do Estatuto da Criança e do Adolescente – ainda possa ocorrer, fica mais clara a necessidade do engajamento de todos, a partir de ações preventivas e abordagens alternativas, de cunho eminentemente pedagógico, que com certeza podem ter uma eficácia ainda maior”.