Por Thathyana Weinfurter Assad
Em 2011, o Dr. Bernardino Santi, médico especialista emantidoping, foi entrevistado por Drauzio Varella e respondeu a algumas perguntas sobre os famosos anabolizantes (veja aqui). Dentre as informações prestadas por ele, à época, estão as seguintes:
“Os anabolizantes incrementam a síntese de determinadas substâncias musculares e ósseas, mas somente os médicos podem prescrevê-los. Seu uso exige controle rigoroso, pois podem causar problemas de saúde muito sérios.
Do ponto de vista médico, são drogas utilizadas para tratamento de algumas doenças consumptivas, que desgastam a musculatura e os ossos, e como reposição hormonal para os portadores de hipogonadismo, que sofreram algum tipo de trauma testicular ou desenvolveram um tumor e tiveram os testículos subtraídos. Os esteróides anabolizantes são também indicados para os astronautas que ficam muito tempo no espaço e têm perdas significativas da massa óssea e muscular. (…)
Os anabolizantes foram descobertos com o intuito de tratar determinadas doenças, mas algumas pessoas descobriram que seu uso pode incrementar o aumento de massa muscular e é aí que começam os problemas. (…)
O fígado é um dos órgãos acometidos e são frequentes os casos de hepatomas, de câncer de fígado. O uso de anabolizantes provoca também atrofia testicular. Jovens de 28, 30 anos apresentam azoospermia (ausência de espermatozóides), diminuição da libido e impotência porque a droga mexe com o equilíbrio hormonal.”
Hoje (08 de abril) é dia mundial de combate ao câncer. O uso equivocado de anabolizantes, conforme reportagens sobre o tema, pode levar o organismo ao acometimento pela doença neoplásica. Partindo-se dessa reflexão, aborda-se, na coluna de hoje, a tipificação criminal da importação irregular de medicamentos. Qual o crime cometido por aquele que importa, indevidamente, anabolizantes ou outros medicamentos?
A questão não é de fácil tratativa. Vejamos.
Ao tratar sobre medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos, o Regulamento Aduaneiro compila parte da legislação existente (Lei nº 5.991/1973 e Lei nº 6.360/1976), nos seguintes termos:
Art. 615. A importação e a exportação de medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos, bem como produtos de higiene, cosméticos, perfumes, saneantes domissanitários, produtos destinados à correção estética e outros de natureza e finalidade semelhantes, será permitida apenas às empresas e estabelecimentos autorizados pelo Ministério da Saúde e licenciados pelo órgão sanitário competente.
Ou seja, percebe-se a preocupação que deve ter a fiscalização aduaneira, a fim de que se dê atenção, no controle do tráfego de mercadorias nas fronteiras, à importação e à exportação de aludidos produtos, exigindo-se, inclusive, licenças específicas. Isso ocorre, especialmente, considerando a questão de saúde pública envolvida.
Assim, pergunta-se: qual o crime cometido por aquele que pratica importação irregular de medicamentos (dentre eles, os famosos anabolizantes)?
O Código Penal prevê, no artigo 273, a conduta de “Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa”. Em seu § 1º, preconiza: “Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado”. Importante, ainda, mencionar seu § 1º-B: “Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições: I – sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente; II – em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior; III – sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização; IV – com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; V – de procedência ignorada; VI – adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.” Aceita, tal delito, a modalidade culposa, nos termos do § 2º, do mesmo artigo.
A princípio, a conduta daquele que importa medicamentos, em qualquer dessas condições, parece estar amoldada ao aludido dispositivo legal. Note-se, inclusive, que tal crime é considerado crime hediondo, nos termos do artigo 1º, inciso VII-B, da Lei nº8.072/1990.
Mencione-se que a atual redação do artigo 273, do Código Penal, foi dada pela Lei nº 9.677/1998 e, desde então, críticas no tocante à violação do princípio da proporcionalidade não faltaram. A pena é elevadíssima, maior que a estabelecida para o tráfico de substâncias entorpecentes. Aliás, fazendo-se uma análise do diploma penal pátrio, o crime do artigo 273 tem pena mínima mais elevada do que o crime de homicídio simples, de estupro, de roubo simples! Há decisões, inclusive, declarando a inconstitucionalidade incidental de partes da norma, a exemplo do que ocorreu quanto à Arguição de Inconstitucionalidade no Habeas Corpusnº 239363/PR, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em que houve a declaração, pela via difusa, de inconstitucionalidade do preceito secundário do artigo 273, § 1º-B, do Código Penal.
Há decisões que substituem o preceito secundário da norma pela pena prevista no artigo 33, da Lei nº 11.343/2006, para fins de adequação de proporcionalidade, como ocorre no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Afora tais debates acerca da constitucionalidade do dispositivo, dependendo da quantidade de medicamentos importados de maneira irregular, a jurisprudência tem admitido, ainda, em alguns casos, a desclassificação para o crime de contrabando. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem precedentes importantes nesse sentido:
“Tratando-se de importação ilícita de pequena quantidade de medicamentos, ausente potencial violação ao bem jurídico tutelado pelo art. 273 do Código Penal, desclassifica-se a conduta para contrabando, crime contra a administração pública que tutela o controle das importações relativamente às mercadorias proibidas, dependentes de registro, análise ou autorização, anteriormente disciplinado pelo art. 334 do Código Penal, com pena de reclusão de 1 a 4 anos, e, atualmente, pelo art. 334-A do Código Penal, acrescido pela Lei 13.008/2014, com pena de reclusão de 2 a 5 anos” (TRF4, Arguição de Inconstitucionalidade 5001968-40.2014.404.0000, Corte Especial, Rel. Des. Federal Leandro Paulsen, j. Em 19-12-2014).
O debate não termina por aí. Se houver, em tais medicamentos (inclusive anabolizantes), princípio ativo constante da Portaria nº 344/1998, da ANVISA, e houver o dolo na conduta, pode-se estar diante do crime de uso ou de tráfico de entorpecentes. Nesses termos, foi proferida decisão pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
EMENTA: EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. PENAL E PROCESSO PENAL. DENÚNCIA PELO ARTIGO 273, § 1º-B DO DIPLOMA PENAL. ART. 334 DO CÓDIGO PENAL. DESCLASSIFICAÇÃO. Quanto à importação de anabolizantes em desacordo com os regulamentos da vigilância sanitária (ANVISA) a conduta constitui crime de tráfico de drogas na forma da Lei 11.343/08 (SIC), sendo passível a desclassificação do art. 273 § 1º e § 1º-B, I e V, do CP para o art. 28 da Lei 11.343/08 (SIC) quando suficientemente demonstrado que os produtos são para uso próprio. (TRF4, ENUL 5000509-85.2010.404.7002, Quarta Seção, Relatora p/ Acórdão Cláudia Cristina Cristofani, juntado aos autos em 11/12/2015).
Contrabando? Tráfico de entorpecentes? Uso de drogas? Crime do artigo 273, do Código Penal? Afinal, será que a segurança jurídica virou falácia ou é a lei que tem um tumor a ser retirado? Ou serão as duas coisas?
Fonte: Canal Ciências Criminais