O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, entregou ao Supremo Tribunal Federal, na semana passada, a mais dura peça acusatória contra o PT. Janot pede a inclusão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como um dos investigados no inquérito 3.989. Ao descrever o papel do ex-presidente no caso, que justificaria uma investigação mais aprofundada, Janot faz uma das mais pesadas afirmações já dirigidas ao ex-presidente. “Pelo panorama dos elementos probatórios colhidos até aqui e descritos ao longo dessa manifestação, essa organização criminosa jamais poderia ter funcionado por tantos anos e de uma forma tão ampla e agressiva no âmbito do governo federal sem que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dela participasse.” Se o mensalão arranhou a imagem do PT, a colocação de Lula como chefe do petrolão pode representar o ocaso de um partido que, em 13 anos, teve a capacidade de combinar avanços sociais com dezenas de denúncias de corrupção e fisiologismo, sempre aliado ao PMDB – que agora critica. A Lava Jato, assim, avança em relação ao mensalão, no qual a participação de Lula foi levantada, mas o ex-presidente passou incólume pelo crivo investigatório. Agora, Lula é o principal investigado.

O inquérito 3.989 foi um dos 25 abertos um ano atrás no pacote de investigações da Procuradoria-Geral da República levado ao Supremo Tribunal Federal. Era uma espécie de inquérito guarda-chuva, onde se concentravam as investigações sobre os políticos que se valeram do petrolão. A cada episódio específico, um novo inquérito era aberto, restando ao 3.989 esquadrinhar o esquema na Petrobras que abasteceu os partidos e as campanhas. A ideia é investigar o sistema. O processo levava o apelido de “quadrilhão” e é tocado às claras, sem sigilo. Um ano depois, o “quadrilhão” tem 2.300 páginas, quase sete dezenas de investigados e um alvo principal: Luiz Inácio Lula da Silva. Na semana passada, além dos 39 investigados que figuram no inquérito, Janot incluiu outros 29.
O inquérito do quadrilhão, assim como o do mensalão, é dividido em núcleos operacionais e suas áreas de influência. Naquele caso, em 2005, o Ministério Público buscava os “atos de ofício” que pudessem caracterizar a corrupção passiva e ativa. Com a Lei das Organizações Criminosas, de 2013, perdeu-se a obrigação de encontrar o ato de ofício e por isso fica mais fácil enquadrar Lula como o chefe da “organização criminosa” do petrolão, no dizer de Janot. “Já no âmbito dos membros do PT, os novos elementos probatórios indicam uma atuação da organização criminosa de forma verticalizada, com um alcance bem mais amplo do que se imagina no início e com uma enorme concentração de poder nos chefes da organização”, afirma o procurador-geral no texto.
De líder político com recordes históricos de popularidade, Lula passa a ser tratado como líder de um esquema para melar a Lava Jato. Para chegar a essa conclusão, Janot cita os áudios de Lula e as delações premiadas. “Os diálogos interceptados com autorização judicial não deixam dúvidas de que, embora afastado formalmente do governo, o ex-presidente Lula mantém o controle das decisões mais relevantes, inclusive no que concerne às articulações espúrias para influenciar o andamento da Operação Lava Jato, a sua nomeação ao primeiro escalão, à articulação do PT com o PMDB, o que perpassa o próprio relacionamento mantido entre os membros desses partidos no que concerne ao funcionamento da organização criminosa ora investigada”, diz o relatório.
Não bastassem as duras palavras de Janot sobre Lula no inquérito, o ex-presidente foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República. Em outras palavras, isso significa que, aos olhos do Ministério Público, Lula é um criminoso. A conclusão exala do rumoroso caso da delação de Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras que recebeu dinheiro para permanecer calado e não entregar petistas e padrinhos do PMDB. O senador Delcídio do Amaral, preso em flagrante em novembro do ano passado, afirmou que o plano de silenciar Cerveró partiu de Lula e foi bancado pelo pecuarista José Carlos Bumlai, próximo ao ex-presidente. Diogo Ferreira, assessor de Delcídio, foi além e disse que entregou o dinheiro. Processualmente, esse é o primeiro passo de uma ação que pode se arrastar por anos. Mas há um simbolismo. Foi Lula que, sempre criticando outros governos, vangloriava-se de ter respeitado as listas elaboradas por procuradores para nomear o procurador-geral da República. Era um sinal de maturidade. Foi o mesmo Lula que, agora sob investigação, passou a xingar Janot de ingrato e cobrar favores.
Bastou que as instituições se mexessem e, com autonomia, tocassem as investigações “doa a quem doer”– para usar uma desgastada e vazia expressão que a presidente Dilma gostava de repetir. Não bastasse a denúncia contra Lula, o inquérito 3.989 é um tiro duplo, um ataque ao PT e ao PMDB. Nas palavras de Janot, esses dois partidos representam os “eixos centrais” do petrolão. É uma exposição das entranhas de como o PT optou pelo fisiologismo para se manter no poder e garantir a governabilidade – a mesma que agora não serve para mais nada. A cúpula do governo está sob suspeita, inclusive a própria presidente. A Procuradoria-Geral da República quer que passem a figurar como investigados nesse inquérito os ministros Jaques Wagner, Ricardo Berzoini e Edinho Silva, além do assessor Giles de Azevedo. Juntos, eles formam o núcleo do que sobrou do governo Dilma. Edinho já foi mencionado por três empreiteiros, por seus métodos de buscar contribuições de campanha de empresas que operavam o petrolão. Estão lá também representantes de núcleos anteriores dos governos Lula e Dilma, que foram caindo por outras suspeitas de corrupção, como os ex-ministros Antonio Palocci e Erenice Guerra. Ambos aparecem novamente no petrolão, suspeitos de outras práticas.
Soma-se ao inquérito 3.989 e à denúncia contra Lula um processo em que a principal investigada é a própria presidente da República. Dilma é suspeita de obstruir a Justiça, ao nomear um ministro do Superior Tribunal de Justiça para melar a Lava Jato. Baseado na delação do senador Delcídio do Amaral e de seu assessor, Diogo Ferreira, Janot afirma que Dilma nomeou o desembargador Marcelo Navarro após ter garantias de que ele votaria pela libertação de empreiteiros presos pela Operação Lava Jato, entre eles Marcelo Odebrecht. Ferreira entregou aos investigadores provas de contatos com Navarro para tratar do assunto. Navarro foi nomeado por Dilma e votou pela soltura dos réus, como combinado, mas foi vencido por 4 a 1.

Janot pede para investigar Dilma por outra suspeita de obstrução da Justiça: a nomeação de Lula a ministro-chefe da Casa Civil. A principal evidência é o histórico e fatídico áudio, no qual ela avisa que envia às pressas um ato de nomeação para Lula usar em caso de necessidade. O ato foi entendido pela procuradoria como uma forma de garantir a Lula o direito ao foro privilegiado de modo que o ex-presidente pudesse fugir do risco de ser preso a qualquer momento por uma decisão do juiz Sergio Moro. Lula foi nomeado, mas o Supremo sustou sua posse. Desde então, Lula permanece em um limbo, no qual nunca assumiu o cargo, mas figura com a proteção do foro privilegiado, garantida aos ministros de Estado.
O inquérito contra Dilma estava rascunhado desde o início de abril. Faltava, contudo, definir como e quando o caso seria levado ao Supremo. Havia, claro, uma preocupação para não influenciar o processo de impeachment. O timing perfeito, segundo integrantes do MP, não existe para um processo dessa natureza. O fato é que agora o processo está no Supremo e, num primeiro momento, tramitará no mais alto grau de sigilo. É o chamado “processo oculto”, que nem sequer aparece no sistema do STF. As primeiras diligências devem começar nas próximas semanas. Nesta semana, Dilma enfrentará seu momento mais dramático, com a votação de seu afastamento temporário pelo Senado (leia a reportagem na página 44). Mesmo afastada, Dilma não perde o foro privilegiado, portanto deve prestar esclarecimentos por ofício.
Com a denúncia de Janot, Dilma e o PT sofreram uma dura derrota que pode representar o ocaso de um projeto de poder de 13 anos. Para conseguir vencer tantas eleições, o PT fez uma escolha pelo fisiologismo, ao se aliar àquilo do que sempre tentou se diferenciar. A Lava Jato mostrou que a escolha pelo fisiologismo custou muito caro e o preço foi pago pela Petrobras. O estrago está feito e a Lava Jato trabalha para recuperar o prejuízo. A fatura, na política e na Justiça, será paga pelo Partido dos Trabalhadores.
