Estreia hoje nos cinemas de São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Belo Horizonte o longa Canção da Volta, dirigido por Gustavo Rosa Moura, e com João Miguel e Marina Person no elenco. No roteiro, o dia-a-dia de Julia, vivida por Marina, e seu marido Eduardo, personagem de João Miguel. Ambos juntos há mais de uma década e cercados pelos filhos, Lucas, Francisco Miguez, e Maria, Stella Hodge. Até este momento, apenas o cenário de uma família que até poderia ser de propaganda de margarina. Mas não. A trama é recheada de fortes conflitos psicológicos. Ciúme, altas doses de possessividade, depressão, dificuldades de viver num relacionamento duradouro estão entre as discussões máximas da trama.
Marina, que vive seu primeiro papel como protagonista, é dirigida também pela primeira vez pelo marido, Gustavo. A conexão não para por aí. O apartamento do casal, juntos há oito anos, também serviu de locação para o longa. Aqui, a dupla conta os desafios dessacomo foi trazer a ficção para dentro de casa.
MARIE CLAIRE Como foi estrear como protagonista?
MARINA PERSON Foi muito bom. Eu tinha acabado de sair do Califórnia [filme dirigido pela atriz e produzido por Gustavo] e foi uma experiência superintensa. Precisei de umas semanas para virar a chavinha, conseguir sair de um processo e entrar em outro. Deixei o lado diretora em casa e mergulhei no meu papel de atriz. Na verdade sempre admirei o trabalho do ator, acho que é o aspecto que mais me chama atenção quando assisto a um filme. Viver a Julia me exigiu muito preparo e ensaio. O ator Victor Mendes me ajudou muito nesse processo e pudemos experimentar muitas coisas que depois incorporamos na filmagem. Sem contar a generosidade do João [Miguel] em cena! Ele é um ator de muita energia, potência, entrega – e ao mesmo tempo muita paciência. Foi uma experiência transformadora.
MC Como funciona esta troca de papéis entre você e o Gustavo? Em Califórnia ele foi produtor, você, diretora. Agora vive a protagonista, ele diretor…
MP Gostamos muito de trabalhar juntos e acreditamos na nossa sintonia. O Gustavo é um superparceiro! Adoramos compartilhar nossas ideias, projetos e temos muita afinidade nesse sentido criativo. Em a Canção da Volta lidamos diretamente com a intimidade de um casal. E o fato dele estar ali ao meu lado, nas cenas de nudez, por exemplo, também me ajudou e estimulou a fazer as cenas de amor e sexo.
MC Mexeu muito com suas emoções mergulhar numa personagem em crise como a Julia?
MP Mexeu. Fiz muitos exercícios para alcançar os estados da personagem, e esses exercícios acessavam minhas próprias experiências, memórias, traumas, dores, mágoas. Essas coisas reverberam na gente durante e depois. Nosso esforço humano é para deixarmos de sofrer, esquecermos os episódios dolorosos…E o processo do ator vai na direção contrária a isso. Temos que acessar nossos demônios internos.
MC Como foi a experiência de filmar em casa?
MP Quando se escreve um roteiro, sempre se imagina como será a cara de tal personagem, que cara terá tal locação e coisas do tipo. Mas na maior parte dos casos, tudo vai mudando, porque por mais que o diretor imagine o que ele quer para o filme, na hora “h” ele tem que lidar com a realidade, com as limitações. No caso de Canção da Volta, tínhamos esse apartamento na mão, e por acaso a nossa casa era super adequada pra história. Tinha muita vida aqui, móveis, objetos, bagunça… Pode ser um problema convencer os donos da casa a emprestar ou alugar para um filme, e nesse caso foi fácil [risos]. Tivemos ainda a sorte do apartamento vizinho estar para alugar, então alugamos durante o tempo da filmagem para ter um lugar onde dormir, tomar banho, comer e servir de base para a produção também.
MC Você e o Gustavo estão juntos há um bom tempo…Pessoalmente, acredita em relações duradouras?
MP Acredito e muito! Acima de tudo, creio na união entre duas pessoas, na qual cada núcleo dita suas regras. Gustavo e eu sempre pudemos conversar muito sinceramente sobre todos os assuntos, e isso é o que nos faz fortes pra encarar as tais tempestades. E elas acontecem. O que faz a gente ficar junto é a capacidade que temos de lidar com elas.
MC Na vida real, você acredita que o amor pode renascer depois de ser sepultado?
MP Acredito que sim, pode acontecer, mas nunca rolou comigo. Eu sempre consegui virar a página e não voltar nela.
MC De onde veio sua inspiração para o roteiro?
Gustavo Rosa A complexidade por trás da maioria das relações amorosas, sobretudo das mais longas e intensas, sempre me instigou. O filme surgiu justamente dessa inquietação e também do interesse pelos momentos de crise, de tempestade emocional. E, sobretudo, pelo eterno conflito entre o desejo de controle e a total impossibilidade de realmente controlar o que quer que seja. Pouco importa se a vida em questão é a sua ou a do outro. O longa é um mix de experiências que fui observando, vivendo ou imaginando ao longo da vida. Dentre essas experiências, duas me marcaram de um jeito especial: o impacto que tive ao ler o livro Minha fantasma, do Nuno Ramos, um amigo muito querido. E também do filme Uma mulher sob influência, do John Cassavetes. Assisti numa sessão especial, numa noite particularmente quente, no cine Odeon, no Rio de Janeiro. Lembro da imagem da Gena Rowlands movendo os braços e fechando os olhos. Mais uma vez um impacto. Sem saber exatamente o que fazer com aquilo, comecei a tomar notas de cenas e personagens para um possível filme que falasse também de uma relação amorosa complexa. Que luta para sobreviver a crises muito profundas e insondáveis.
MC Escrever sobre crises de ciúmes, possessividade, egoísmo, obsessão faz com que tudo também acabe funcionando como uma autoanálise?
GR Talvez. Acho que, no mínimo, faz a gente pensar sobre o assunto. E se colocar um pouco na pele dos outros.
MC Por que escolheu seu próprio apartamento e o da Marina para ser também a casa do casal de protagonistas?
GR A casa sempre representa muita coisa num casamento. Apesar da decoração do apartamento no filme ser diferente da nossa – mudamos as cores, alguns móveis e a luz da casa. A intimidade com o espaço ajudou muito na criação das cenas e no clima geral. Pudemos escrever o roteiro já com o espaço na cabeça e ensaiar no próprio local. Além disso, pudemos também trabalhar o espaço dramaticamente, quase como um personagem.
MC Como foi dirigir a Marina dessa vez? Foi distinta da experiência de ter trabalhado com ela como diretora?
GR Sim, totalmente diferente. Foi uma experiência de outra natureza tanto para mim como para ela. Exigia muita entrega e confiança de ambas as partes. Fizemos uma preparação longa, com exercícios, jogos, leituras e ensaios. Tudo era novo para nós, arriscado. Cada dia de filmagem, um novo desafio, algo diferente a ser descoberto. No final, sinto que fiz esse filme verdadeiramente junto com os atores e com a equipe, dia após dia. E isso foi essencial.
Fonte: Marie Claire