“Foi uma experiência inesquecível. Parecia um caldeirão, com resíduos de minério. Não foi fácil caminhar por escombros e, no caminho, encontrar pedacinhos da história de cada família que construiu sua vida em Bento Rodrigues. É um vilarejo fantasma, de corpo e de alma”.
O relato é do piloto santista Lu Marini, que realizou uma expedição pela região de Mariana (MG), devastada pelo rompimento da barragem de Fundão, considerado a maior tragédia ambiental do gênero, em todo o mundo, nos últimos 100 anos.
Um ano após o desastre, A Tribuna On-line conversou com Lu Marini. Durante 22 dias, ele registrou as sequelas da enxurrada de lama provocada pelo rompimento da barragem. O material desceu pelo Rio Doce até chegar ao mar, em Regência (ES).
Na expedição Rastreando o Rio Doce, Lu Marini sobrevoou e conheceu de perto a realidade em que se transformou a vida de centenas de famílias que perderam suas casas e seu sustento após a tragédia ambiental.
Toda a experiência e o material captados após o rompimento da barragem, que provocou o despejo de mais de 60 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, levando destruição e morte por onde passou, farão parte de um livro e um documentário que serão lançados em abril de 2017, quando se comemora o aniversário do Rio Doce.
“Essa expedição faz parte de um projeto que iniciei ainda em 2014, o ‘Projeto Rios’. Nesse trabalho, tenho como objetivo sobrevoar as principais bacias hidrográficas do País. Comecei minha expedição sobrevoando o Rio Tietê, considerado o mais poluído do Brasil, e depois segui com o projeto sobrevoando o Rio São Francisco e o Rio Paranapanema, na divisa entre os estados de São Paulo e Paraná”.
Piloto santista fez expedição pela região afetada pelo rompimento da barragem de Fundão (Foto: Divulgação/Lu Marini) |
Debaixo da lama
Na viagem, realizada entre os dias 29 de agosto e 22 de setembro, Lu Marini sobrevoou a região de Mariana e a barragem de Fundão e pousou em Bento Rodrigues, distrito que ficou completamente soterrado pela lama.
Considerando-se o volume de rejeitos despejados, o acidente em Mariana equivale, praticamente, à soma dos outros dois maiores acontecimentos já registrados no mundo – ambos nas Filipinas, um em 1982, com 28 milhões de m³ de lama; e outro em 1992, com 32,2 milhões de m³. Na tragédia que ocorreu na região mineira, a onda também devastou a vegetação nativa, poluiu a bacia do Rio Doce e deixou 19 mortos.
Nos 22 dias de expedição, o piloto santista percorreu quase 1 mil quilômetros. “Assim que pousei em Bento Rodrigues, fui conhecer de perto o problema. Por mais que se veja na TV e nos noticiários o que aconteceu naquela região, nada se compara a estar lá. Passa um filme pela cabeça da gente, de como deve ter sido terrível para quem estava lá”.
Durante sua passagem pelo Município, Lu Marini conheceu um morador que teve seu comércio soterrado pela lama. “Estava caminhando e encontrei o Sandro. Ele estava muito abalado porque havia perdido tudo. Seu comércio havia ficado soterrado após a tragédia ambiental. Ele também me contou que sempre pedalava por aquela região porque seu pai e irmã, que morreu pouco antes do acidente, estavam enterrados lá”.
Onda de lama atingiu mais de 35 municípios em Minas Gerais e outros quatro no Espírito Santo (Foto: Divulgação/Lu Marini) |
Ainda em Bento Rodrigues, o piloto se comoveu com a história de duas amigas, que estavam grávidas na ocasião da tragédia. “Conheci a Priscila e Pâmela, que tinham histórias bem similares”.
A filha da Pâmela, Emanuele, de apenas 4 anos, morreu soterrada. Já Priscila perdeu seu bebê e teve um outro filho, Caio, soterrado. Ele ficou preso debaixo dos escombros por quatro horas, mas graças a Deus, sobreviveu. “Foi uma emoção muito grande escutar esses desabafos. Me senti um porta-voz daqueles que lutam para não deixar suas histórias caírem no esquecimento”.
Acompanhamento psicológico
Entre pousos e decolagens, Lu Marini fez uma parada em uma escola descendo o Rio Gualaxo. “Na única cidade atingida pela lama, já que as demais eram distritos de Mariana, conversei com algumas crianças que ainda estão traumatizadas com tudo que aconteceu. Elas fizeram desenhos, redações. Escutei relatos na visão deles. Foi muito chocante”.
Lu Marini lembra que as crianças ainda recebem atendimento psicológico para conseguir lidar com o trauma após a tragédia ambiental. “Lembro da carta da Laís Helena de Souza, uma menina de 8 anos. Ela relatou que, quando a lama chegou em sua cidade, ficou traumatizada”.
Na carta, a menina diz: “Tive que fazer tratamento psicológico e ver aquela tragédia na minha cidade. O serviço do meu pai foi atingido pela lama e ele ficou cinco meses sem poder vender”.
Piloto esteve reunido com crianças de uma das comunidades afetadas pela tragédia ambiental (Foto: Divulgação/Lu Marini) |
Seguindo viagem, Lu Marini pousou em um outro ponto crítico: a região sobre a Hidrelétrica Risoleta Neves, conhecida como Candonga, na Zona da Mata, em Minas Gerais.
“Quase um ano após o desastre, a paisagem ainda é muito chocante. Essa barragem foi responsável por segurar parte da lama para não ir toda para o Rio Doce. Porém, você vê que ela ficou muito fragilizada, tem muitas rachaduras e o risco hoje é que essa barragem, com as chuvas, não consiga segurar a lama e acabe se rompendo, provocando outro desastre. Só vendo de cima a gente tem a dimensão da gravidade do problema”.
Além dos rejeitos de minério que o Rio Doce enfrenta, Lu Marini presenciou uma situação ainda mais alarmante: deparar-se com famílias que tinham o rio como fonte de alimento e que não têm mais do que sobreviver.
“Pessoas que dependiam do rio para sobreviver e hoje não têm mais água, sequer para beber. Terminei essa expedição com a esperança e o desejo de que o Rio Doce volte a ser vida para todos que dependem dele. Existe um longo caminho pela frente e não será fácil. Vi lama de rejeitos minerais, poluição, seca, morte das nascentes, destruição das matas e florestas. Se não fizermos nada, vamos acabar com recursos naturais indispensáveis para a nossa sobrevivência e será o fim, de tudo e de todos”, concluiu Marini.
Prejuízos
A catástrofe de Mariana matou 14 toneladas de peixes ao longo dos rios Carmo e Doce e atingiu 240 hectares de Mata Atlântica. Foram afetadas pela lama 35 cidades em Minas Gerais e outras quatro no Espírito Santo.
A tragédia ambiental também fez com que 329 famílias ficassem desabrigadas. Para essas pessoas, um auxílio financeiro, de um salário mínimo, acrescido de 20% para cada dependente, começou a ser pago um mês após a tragédia. As famílias também recebem cestas básicas no valor de R$ 338,61. O mesmo valor também é pago aos mais de 1,2 mil pescadores, que ficaram sem seu meio de sustento após a contaminação do Rio Doce.
Tragédia ambiental deixou mais de 329 famílias desabrigadas em Minas Gerais (Foto: Divulgação/Lu Marini) |
Porém, para uma comunidade em especial, a dos índios krenak, a chegada da lama ao Rio Doce representou muito mais: as águas do rio não eram apenas o local de onde vinha o peixe para comer e a água para beber ou lavar as coisas. Até novembro do ano passado, era em suas margens que eles realizavam rituais e festas, batizavam as crianças. Tratava-se de um lugar sagrado. Sem o rio, as práticas simbólicas passaram a ser realizadas em cabanas, embaixo das árvores.
Um ano após a tragédia, peritos da Organização das Nações Unidas (ONU) lançaram ainda um apelo para que as autoridades brasileiras tomem “medidas imediatas” para solucionar os impactos persistentes do colapso letal da barragem de rejeito de minério de Fundão.
Segundo a entidade, diversos danos ainda não foram tratados e nem solucionados, entre eles o “acesso seguro à água para consumo humano, a poluição dos rios, a incerteza sobre o destino das comunidades forçadas a deixar suas casas”.
*Com informações da Agência Brasil e Estadão Conteúdo