Entrando em um táxi a caminho da “Justiça Federal” o jovem motorista, com seus cabelos longos, me pergunta: – Doutor, o senhor é advogado?
Eu respondo: – sou sim, sou criminalista.
– Então o senhor vai poder me esclarecer uma dúvida! Por que raspam a cabeça do preso?
– Um agente do estado responderia a você o seguinte: “É um procedimento operacional padrão (POP) que visa garantir a higiene e a saúde dos detentos, bem como de todos que trabalham nos presídios”.
– Qual outra resposta poderia ser dada, doutor? – Indaga o motorista alisando suas longas madeixas.
– Bem, Foucault… – Quem? Interrompe-me abruptamente o motorista. –Michel Foucault, sociólogo, filósofo e pensador francês, diria: “o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior adestrar; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo”. A disciplina “fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício...”.[1]
– Complicado isso doutor.
– Sim, mas é a verdade. Na prisão, observa Hulsman, o condenado “penetra num universo alienante, onde todas as relações são deformadas. A prisão representa muito mais que a privação da liberdade com todas as suas sequelas. Ela não é apenas a retirada do mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também e principalmente, a entrada num universo artificial onde tudo é negativo. Eis o que faz da prisão um mal social específico: ela é um sofrimento estéril”.[2]
– Quer dizer então que o preso deve ser humilhado, doutor? Que sacanagem! – Concluiu o assustado motorista.
– Isso mesmo. Humilhado, dominado e adestrado.
– Doutor, mas e o tal dos direitos humanos permite isso?
– Olha, de acordo com a Constituição da República – nossa lei maior – “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (art. 5º, XLIX). Diz ainda, a Constituição que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III).
– Doutor, eu posso fazer uma última pergunta?
– Claro.
– O senhor acha que a prisão recupera?
– José Carlos (nome do motorista) sua pergunta é bastante complexa e acho que vamos chegar ao destino antes que eu consiga lhe responder devidamente, mas vou tentar lhe dizer algo: na prisão forma-se outra sociedade, bastante diferente da que existe no mundo livre. Na prisão vigora outras regras. Na verdade, quanto mais tempo o indivíduo passa na prisão mais dificuldade terá de se adaptar a vida extramuros. Assim, sendo bastante sincero contigo, não vejo nenhuma possibilidade de alguém sair melhor da prisão do que entrou. A prisão quase sempre transforma os seres humanos para piores. É um sofrimento desnecessário e estéril.
– Doutor, chegamos.
– Sim, chegamos. Espero que você tenha uma boa tarde.
– Depois dessa nossa conversa vai ser difícil, doutor.
– Difícil mesmo é sobreviver na prisão…
Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado e Doutor em Ciências Penais pela UFMG.
[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Ligia M. Pondé Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.
[2] HULMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993.
(Fonte: Justificando)