Um camponês brasileiro, de bisavós indígenas e vida simples no interior do Rio de Janeiro. Tinha dificuldades para assinar o próprio nome e encarava o futebol como uma diversão. Sua maior alegria era driblar, driblar, voltar e driblar de novo. As pernas tortas – o joelho direito virado para dentro, e o esquerdo, para fora – não o impediram de se tornar um dos maiores jogadores de todos os tempos. E o mais alegre.
“Quando ele estava lá, o campo era um picadeiro de circo; a bola, um bicho amestrado; a partida, um convite à festa. Garrincha não deixava que lhe tomassem a bola, menino defendendo sua mascote, e a bola e ele faziam diabruras que matavam as pessoas de riso…”, romantizou o escritor uruguaio Eduardo Galeano.
Fora de campo, Manuel Francisco dos Santos conquistou várias mulheres e bebia todas as garrafas ao seu alcance. O fim de vida foi triste. Sem dinheiro e derrotado pelo alcoolismo, morreu aos 49 anos, no dia 20 de janeiro de 1983.
A seguir, 7 partidas marcantes durante a sua carreira, já que 7 era o número que vestia. As histórias foram retiradas do livro Estela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha, do jornalista Ruy Castro, pela Companhia das Letras. Leitura mais do que recomendada para os amantes do futebol.
1) 1953: O primeiro gol pelo Botafogo
Garrincha começou a se destacar no futebol amador, em Pau Grande, distrito da cidade de Magé (RJ), onde nasceu em 1933. Chamou a atenção de ‘olheiros’, que o levaram ao Botafogo. No seu primeiro treino pelo time profissional em General Severiano, o ponta direito enfrentou Nilton Santos. O lateral esquerdo, um dos maiores de todos os tempos na posição, tinha 28 anos à época e sofreu com os dribles do jovem de 19 anos.
Ao final do treino, disse: “o garoto é um monstro. Acho bom vocês o contratarem. É melhor ele conosco do que contra nós”. Em junho de 53, o Botafogo pagou o equivalente a 27 dólares ao Serrano de Petrópolis, para comprar o passe de Garrincha.
A estreia no time profissional ocorreu no dia 19 de julho. O Glorioso não vivia boa fase e perdia, em casa, para o Bonsucesso por 2 a 1. Foi marcado um pênalti para o Botafogo. Os jogadores mais experientes, entre eles Nilton Santos, não se apresentaram para bater, e o novato Garrincha pegou a bola e converteu a penalidade. Era o seu primeiro gol numa partida oficial. O jogou terminou 6 a 3 para o time alvinegro, com três gols do camisa 7.
2) 1957: O primeiro título. Fluminense foi a vítima
Sem ganhar o Estadual desde 1948, o Botafogo apostou em João Saldanha para comandar o time – fato raro, pois ele nunca tinha jogado, e os treinadores eram ex-jogadores. Conhecido por ser um playboy na Copacabana dos anos 40, Saldanha pediu para não receber salário ao exercer a função. Visto com desconfiança pelos rivais, montou um time com Didi, Garrincha, Quarentinha e o centroavante Paulo Valentim na linha de frente.
Na última rodada, o Fluminense precisava de um empate no Maracanã para erguer o troféu, mas o Botafogo trucidou o rival: 6 a 2, com cinco gols de Paulo Valentim e um de Garrincha.
Quem sofreu com os dribles do camisa 7 foram os marcadores Altair e Clóvis. Ruy Castro conta que, quando o Botafogo fez 4 a 1, o ponta Telê, que depois virou o técnico Telê Santana, falou a Didi: “Vocês já são campeões. Diga ao Garrincha para parar de desmoralizar o Clóvis e o Altair”. Minutos depois, o Mané driblou meio time do Flu e marcou o quinto gol do Glorioso. Era o fim de um jejum de nove anos sem título, e a primeira conquista de Garrincha.
3) 1958: O surgimento do grito “olé!”, no México
Naquela época, eram frequentes as excursões de times brasileiros para amistosos na Europa e por países da América. Quem organizava essas viagens eram empresários, que aproveitavam a ocasião para vender atletas. A excursão pelas Américas entre o Natal de 1957 e o Carnaval de 58 estava reservada ao Fluminense. Entretanto, a exibição do Botafogo no 6 a 2 sobre o rival fez o empresário Cacildo Osés pedir desculpas ao Flu e providenciar os passaportes para embarcar a delegação botafoguense.
Foi numa partida no México, em fevereiro de 58, que nasceu o grito de “olé” no futebol. Pelo menos essa é a história contada por Saldanha. Num duelo entre Botafogo e River Plate, que era a base da seleção argentina, Garrincha deu um baile em Vairo, e os torcedores mexicanos importaram para o futebol a expressão tradicional da tourada.
“O ‘Olé!’, gritado por milhares de bocas em uníssono, transformava-se numa gargalhada quando Garrincha esquecia a bola e continuava correndo, com Vairo no seu encalço sem perceber que a bola ficara para trás. Ou quando suas freadas bruscas faziam Vairo esquecer-se de que o campo acabara e esborrachar-se na pista de carvão”, descreve Ruy Castro.
O treinador do River Plate achou melhor substituir Vairo por outro atleta. Segundo Saldanha, ao deixar o campo, o argentino disse: “Não há nada a fazer. É impossível”.
Garrincha e Pelé, durante a final da Copa do Mundo de 1958 – Brasil 5 x 2 Suécia Imagem: FASS
4) 1958: Desmoralizou o “futebol científico” da URSS
Garrincha iniciou a Copa do Mundo de 58 no banco de reservas e não participou da vitória sobre a Áustria e do empate com a Inglaterra. O terceiro jogo seria crucial. Apenas duas seleções se classificariam para as quartas de final, e Brasil, União Soviética e Inglaterra estavam na briga. Assombravam os brasileiros o histórico de derrotas em jogos decisivos e o complexo de vira-lata, expressão cunhada por Nelson Rodrigues.
Campeã olímpica nos Jogos de 1956, a seleção da URSS era muito forte fisicamente e praticava o “futebol científico”. O técnico Vicente Feola optou por mexer na escalação, e Pelé e Garrincha entraram na equipe pela primeira vez. A estratégia era ter um time mais ofensivo, para se impor diante da força física dos soviéticos. Feola orientou Didi a lançar a primeira bola do jogo para Garrincha. Virou para o craque das pernas tortas e disse: “tente descadeirá-los de saída”.
O início frenético do Brasil fez com que jornalistas da época descrevessem como “os maiores três minutos da história do futebol”. Logo de cara, Garrincha dribla dois e acerta a trave do temido goleiro Yashin. O Brasil abre o placar aos 3 min, gol de Vavá. O mesmo Vavá faz 2 a 0, aos 31 min do segundo tempo.
Garrincha não balançou as redes, mas partiu pra cima dos europeus. “Nunca o orgulho do ‘científico’ futebol soviético fora tão desmoralizado, e pelo mais improvável dos seres: um camponês brasileiro, mestiço, franzino, estrábico e com as pernas absurdamente tortas”, nas palavras de Ruy Castro. O Brasil deslanchou na Copa, conquistou o título e encantou o mundo do futebol.
Na Copa de 62, Garrincha contava com o apoio da cantora Elza Soares entre os torcedores Imagem: Folhapress
5) Auge e expulsão na Copa de 62
O Mundial de 1962, no Chile, entrou para a história como a Copa de Garrincha. Pelé se machucou logo no segundo jogo, e o Mané assumiu a responsabilidade de ser o melhor jogador do torneio e comandar o Brasil rumo ao bicampeonato.
Na semifinal, contra os donos da casa, marcou dois gols (um de pé esquerdo e o outro de cabeça) e deu o passe para Vavá marcar o terceiro. Aos 39 min do segundo tempo, quando o placar já estava definido – 4 a 2 para os brasileiros –, aconteceu algo raro na carreira de Garrincha. O camisa 7, que sofrera com a marcação violenta do chileno Eladio Rojas, sofreu uma falta e revidou. O bandeirinha chamou o árbitro, que o expulsou.
Não havia suspensão automática, mas o craque brasileiro seria julgado pela comissão disciplinar da Fifa e poderia ser suspenso. Dirigentes e até políticos agiram nos bastidores pela absolvição. Ele jogou a final, resfriado e com febre, e viu Amarildo, Zito e Vavá marcarem os gols do triunfo por 3 a 1 sobre a Tchecoslováquia. “A Copa terminou em olé, com Garrincha pondo o pé sobre a bola e esperando que um adversário viesse tentar tomá-la”.
6) 1962: Sumiço, Elza Soares e show contra o Flamengo
Após a glória na Copa de 62, Garrincha entrou em atrito com dirigentes e torcedores do Botafogo. O atacante caiu de rendimento, devido a dores no joelho e a faltas a treinamentos, por conta das noitadas e da bebida.
Além disso, ele nunca foi bom para negociar seus contratos e era facilmente enrolado pelos dirigentes. Naquele momento, exigia um aumento salarial, e os cartolas culpavam Elza Soares pelo seu comportamento.
Na última rodada do Estadual, o Glorioso estava a um ponto do Flamengo e precisava vencer para conquistar o bicampeonato. Garrincha sumira do clube e avisara que só jogaria se reajustassem seu ordenado. Pedras foram atiradas na casa de Elza. Como ela era flamenguista, falava-se em conspiração para favorecer o rival rubro-negro.
O técnico Marinho e o jogador Tomé foram a Pau Grande buscar Garrincha. Disseram para ele acabar com o Flamengo e usar isso para pressionar os dirigentes do Bota. O camisa 7 atendeu ao pedido: voltou ao time e foi o nome do jogo. Anotou dois gols e deu o chute desviado pelo zagueiro Vanderlei, que marcou contra.
“Estava jogando por ele, não pelo Botafogo. A estrela solitária era ele, não o clube. A partir do terceiro gol, começou a fazer o que mais gostava – e que nunca mais conseguiria fazer: brincar de jogar futebol”, pontua o autor do livro.
Juntos, Garrincha e Pelé nunca perderam Imagem: Divulgação/CBF
7) 1966: Do Corinthians para o último Mundial
Garrincha deixou o Botafogo no final de 1965. A relação ficara insustentável, porque ele se atrasava, faltava aos treinos, sumia do clube e se recusava a viajar. Até os companheiros de equipe se posicionaram contra ele, porque, na ausência do astro, excursões eram canceladas e os atletas deixavam de ganhar um dinheiro extra.
Em janeiro de 66, assinou contrato com o Corinthians, mas o excesso de álcool e o sobrepeso o impediam de jogar em alto nível. Mesmo assim, foi convocado para a Copa do Mundo de 1966 – 46 atletas foram chamados na primeira lista, mas haveriam cortes e 22 disputariam o torneio na Inglaterra. Garrincha chegou a dizer a Elza que, se dependesse dele, preferia ser cortado.
O Brasil ganhou apenas um jogo e acabou eliminado na primeira fase. O triunfo sobre a Bulgária por 2 a 0, com gols de Garrincha e Pelé em lances de bola parada, serviu ao menos para manter uma escrita: juntos pela seleção, os dois craques nunca perderam. Foram 35 vitórias e cinco empates. Formaram a maior dupla da história do futebol mundial.
Fonte: UOL