Logo após a explosão de casos de microcefalia causados pelo vírus zika, entre 2015 e 2016, foram publicados diversos estudos científicos com evidências de que o patógeno é capaz de atravessar a placenta humana, o órgão que mantém o feto conectado ao corpo materno durante a gestação.
Depois disso, os estados passaram a seguir um protocolo, estabelecido pelo Ministério da Saúde, para coletar também amostras de placenta, que podem ajudar no diagnóstico da doença em mulheres que apresentaram sintomas da doença durante a gravidez.
Contudo, na avaliação de um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que tem se dedicado a estudar o assunto com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o protocolo oficial vigente em todo o país precisa ser reformulado.
Recentemente, os cientistas relataram na revista científica Frontiers in Microbiology que garantir representatividade da amostra e adequado armazenamento e transporte é fundamental para que se obtenha o resultado adequado na investigação viral na placenta. O vírus pode infectar diversos pontos da placenta humana, como vilosidades coriônicas, placa basal, placa coriônica, membrana amniótica ou ainda o cordão umbilical.
Diagnóstico
A descoberta sugere que os testes diagnósticos devem levar em consideração essas várias regiões da placenta, a fim de garantir uma adequada representatividade e um diagnóstico mais preciso. “Em vez disso, o protocolo atual descreve que a amostra deve medir um centímetro cúbico e não especifica as regiões da placenta que devem ser analisadas”, diz o biólogo molecular José Luiz Proença Módena, coordenador do Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes (Leve) do Instituto de Biologia da Unicamp e coautor do estudo, à Agência Fapesp.
O trabalho analisou 17 placentas de mulheres que tiveram filhos no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism), da Unicamp. Desse total, 14 casos deram positivo para o vírus zika quando utilizado um kit desenvolvido pelos pesquisadores da Unicamp que possibilita a realização de testes moleculares do tipo RT-PCR em tempo real – um método capaz de detectar o RNA viral das amostras de placenta.
“Coletamos quatro fragmentos de todas as regiões da placenta de cada paciente, incluindo o cordão umbilical”, relata Módena, salientando que foram acompanhadas gestantes que apresentaram sintomas da doença, como febre e manchas na pele, durante a gravidez ou que deram à luz bebês com microcefalia entre 2016 e 2017. De acordo com Módena, a coleta de vários fragmentos da placenta aumenta as chances de detectar o zika, uma vez que há regiões do órgão que concentram mais vírus do que outras.
Os pesquisadores ficaram surpresos ao ver que o exame realizado com amostras de placenta das mesmas pacientes no Instituto Adolfo Lutz, principal órgão de vigilância epidemiológica de São Paulo – que utiliza o protocolo recomendado pelo Ministério da Saúde – deu negativo em todos os casos. “Isso evidencia a urgência em promover mudanças no método vigente”, afirma Módena.
Procurado pela reportagem da Agência Fapesp, o Instituto Adolfo Lutz informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que os testes com placentas continuam sendo realizados com base no protocolo oficial e que no momento não há perspectiva de alterações. Não houve retorno nas tentativas de contato com o Ministério da Saúde.
Pandemia
Módena teme que a pandemia causada pelo novo coronavírus dificulte a tramitação de alteração no protocolo no curto prazo. “A epidemia provavelmente vai adiar uma possível reformulação do teste diagnóstico para identificar zika em placenta”, observa o pesquisador, que também precisou interromper suas atividades habituais para ajudar na força-tarefa criada pela Unicamp para conter o avanço do SARS-CoV-2.
Para a médica Maria Laura Costa do Nascimento, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e coautora do trabalho, a situação emergencial de fato tem exigido que muitos projetos redirecionem esforços de pesquisa para enfrentar o novo coronavírus. No entanto, ela reforça a necessidade de adoção de um protocolo sistemático para a coleta de amostras de placenta assim que possível.
Considerando a atual pandemia, até o momento não se comprovou transmissão vertical da COVID-19, mas faltam estudos de qualidade na investigação viral placentária. O grupo da Unicamp pretende utilizar o conhecimento adquirido com o estudo sobre o vírus zika e também investigar as placentas de casos de infecção por COVID-19 durante a gravidez.
“A placenta é um órgão muito importante para diagnosticar várias doenças, entre elas a causada pelo zika”, diz Nascimento. “Aproximadamente 70% dos infectados são assintomáticos ou apresentam sintomas leves, fazendo com que o doente demore para procurar atendimento médico”, enfatiza.
A pesquisadora esclarece que a chance de que um exame dê positivo passada a fase aguda da infecção é pequena: o vírus pode ser detectado até cinco dias no sangue e oito dias na urina, a partir do primeiro dia da infecção. Já na placenta, diz ela, vestígios do vírus podem ser detectados meses após o início da infecção. Segundo o Ministério da Saúde, foram registrados cerca de 2.054 casos de zika no país até o começo de abril.
Alteração
Os pesquisadores reconhecem que mudar o protocolo não é uma tarefa simples. Coletar um número maior de amostras de partes específicas da placenta pode acarretar aumento de custos, por exemplo. “Uma coisa é extrair, de modo aleatório, um fragmento da placenta e mantê-lo em um freezer a -20 graus Celsius [ºC], como ocorre hoje. Outra é coletar quatro ou cinco fragmentos específicos e conservá-los a -80ºC”, avalia Módena.
De acordo com Nascimento, o desafio será garantir que as maternidades do país tenham corpo técnico treinado para realizar um procedimento de maior especificidade e equipamentos adequados para manter as amostras em boas condições do momento da coleta até a estocagem nos laboratórios de referência, responsáveis por realizar os testes diagnósticos.
“É complicado trabalhar com amostras coletadas no parto, principalmente quando ele ocorre de maneira não programada e é realizado por diferentes plantonistas nos hospitais”, salienta a pesquisadora. “Esses profissionais teriam que receber treinamento para saber coletar fragmentos específicos da placenta e garantir qualidade e representatividade das amostras, com coleta no menor tempo possível após o parto”, pontua.
O artigo (em inglês) pode ser lido em https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmicb.2020.00112/full.