O início de qualquer programa de atividade física pode provocar dores musculares que dificultam movimentos tão simples como o de levantar-se de um sofá. Com o tempo e um pouco de persistência, os músculos se acostumam à demanda e ganham desenvoltura. O mediador celular que torna possível essa adaptação ao exercício acaba de ser descrito por pesquisadores da Harvard University (Estados Unidos) e da Universidade de São Paulo (USP) na revista Cell.
Trata-se de um metabólito chamado succinato, até agora conhecido apenas por sua participação no processo de respiração celular dentro das mitocôndrias. Entre os autores do artigo estão o professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) Julio Cesar Batista Ferreira, integrante do Centro de Pesquisa de Processos Redox em Biomedicina (Redoxoma), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e o pós-doutorando Luiz Henrique Bozi, que conduziu a investigação durante estágio na instituição norte-americana, com apoio da Fapesp.
“Nossos resultados revelam que durante o exercício físico o succinato sai da célula muscular e envia sinais para a vizinhança que induzem um processo de remodelamento do tecido. Os neurônios motores criam novas ramificações, as fibras musculares tornam-se mais homogêneas, o que lhes permite gerar mais força durante a contração, e todas as células passam a captar mais glicose da circulação para produzir ATP [trifosfato de adenosina, o combustível celular]. Há um ganho de eficiência”, conta Julio Cesar Batista Ferreira à Agência Fapesp.
Experimentos
As conclusões do estudo estão baseadas em uma vasta gama de experimentos conduzidos com animais e também com voluntários humanos. O primeiro deles consistiu em comparar mais de 500 metabólitos presentes em um músculo da perna de camundongos antes e após os animais serem colocados para correr em uma esteira até a exaustão.
“Além das fibras musculares, o tecido também é composto por células imunes, nervosas e endoteliais. Se cada uma delas fosse uma casa, as ruas entre as casas seriam o espaço intersticial. Nós analisamos isoladamente cada uma das casas e também as ruas para descobrir o que muda na vizinhança após o exercício. Foi então que notamos um aumento significativo de succinato somente nas fibras musculares e no espaço intersticial”, relata Ferreira.
Fenômeno semelhante foi observado em voluntários saudáveis, com idade entre 25 e 35 anos, durante uma intensa sessão de bicicleta ergométrica com 60 minutos de duração. Nesse caso, a análise foi feita com amostras de sangue obtidas por meio de cateteres inseridos na artéria e na veia femoral. Observou-se que com o exercício a concentração de succinato crescia substancialmente somente no sangue venoso que saía do músculo. Depois, durante a recuperação, esses valores caíam rapidamente.
Resposta ao estresse
A essa altura, os pesquisadores já estavam convencidos de que em resposta ao estresse provocado pelo exercício as células musculares liberavam succinato. Mas ainda era preciso descobrir como e, principalmente, por quê. A análise do sangue dos voluntários deu uma pista: outro composto cuja concentração aumentou com o exercício – tanto no sangue venoso quanto no arterial – foi o lactato (forma ionizada de ácido lático), um sinal de que as células tinham ativado seu sistema emergencial de geração de energia.
“O succinato é um metabólito que normalmente não consegue atravessar a membrana e sair da célula. Lá dentro, ele participa do ciclo de Krebs – uma série de reações químicas que ocorrem dentro da mitocôndria e resultam na formação de ATP. Mas quando a demanda energética aumenta muito e a mitocôndria não dá conta de atender, um sistema anaeróbico é ativado, o que causa a formação excessiva de lactato e acidifica o interior celular. Descobrimos que essa alteração de pH causa uma modificação na estrutura química do succinato que lhe permite passar pela membrana e escapar para o meio extracelular”, ressalta Luiz Henrique Bozi à Agência Fapesp.
A proteína transportadora que ajuda o succinato a sair da célula foi identificada por meio da análise do conjunto de proteínas (proteômica) presentes na membrana das células musculares dos camundongos e dos voluntários. Os resultados mostraram que, após o exercício, aumentava no tecido muscular a quantidade de MCT1, uma proteína especializada em carregar moléculas monocarboxiladas de dentro para fora da célula.
“O tipo de molécula que a MCT1 transporta é semelhante ao succinato quando sofre modificação química em meio ácido – ele deixa de ser dicarboxilado e torna-se monocarboxilado. Fizemos vários experimentos in vitro para confirmar se era esse o mecanismo induzido pelo exercício”, conta o pós-doutorando.
Produção de energia
Um dos testes foi submeter células musculares em cultura a uma condição de hipóxia (privação de oxigênio), com o objetivo de ativar o mecanismo anaeróbico de produção de energia e gerar lactato. Observou-se que isso era suficiente para induzir a liberação de succinato no espaço intersticial.
Outro experimento foi feito com células germinativas de sapos (oócitos) modificadas geneticamente para expressar a proteína MCT1 humana. Os pesquisadores comprovaram que somente ao serem colocados em um meio com pH ácido os oócitos passavam a liberar succinato.
“Já sabíamos, nesse ponto, que a acidez fazia o succinato sofrer um processo químico chamado protonação, que o torna capaz de se ligar à proteína MCT1 e atravessar a membrana para o meio extracelular. Mas ainda precisávamos descobrir o significado desse acúmulo do metabólito no espaço intersticial durante o exercício”, conta Ferreira.
Já está bem estabelecida na literatura científica a importância da comunicação entre as células para o processo de adaptação do organismo a qualquer tipo de estresse. Essa troca de sinais ocorre por meio de moléculas liberadas no espaço intersticial para se ligar a proteínas existentes na membrana de células vizinhas. A ativação desses receptores de membrana desencadeia processos que levam a modificações estruturais e funcionais no tecido.
“Nossa hipótese era de que o succinato desempenhava esse papel de regulação no músculo ao se ligar a uma proteína chamada SUCNR1 [receptor 1 de succinato, na sigla em inglês]. Ela está altamente expressa, por exemplo, na membrana dos neurônios motores”, diz Bozi.
Ensaios
Para testar a teoria, foram feitos ensaios com camundongos geneticamente modificados para não expressar a SUCNR1. Os animais foram colocados para se exercitar livremente em uma roda própria para roedores durante três semanas – período suficiente para que houvesse modificações morfológicas e funcionais no tecido muscular.
“Seria esperado que as fibras se tornassem mais homogêneas e houvesse ganho de força, o que não ocorreu. Além disso, o exercício não promoveu nesses animais a ramificação dos neurônios motores – algo crucial para aumentar a eficiência da contração. E, finalmente, notamos que a capacidade das células de captar glicose não aumentou e que os animais apresentavam menor sensibilidade à insulina do que os camundongos não modificados. Ou seja, sem o receptor do succinato não houve o processo de remodelamento induzido pelo exercício”, conta Ferreira.
Segundo o pesquisador, o estudo mostrou de forma inédita a ação parácrina do succinato no tecido muscular, ou seja, o papel da molécula de sinalizar para as células vizinhas a necessidade de modificar seus processos internos para se adequar ao “novo normal”.
“O passo seguinte é investigar se esse mecanismo está perturbado em outras enfermidades caracterizadas pela alteração do metabolismo energético e acidificação celular – como é o caso das doenças neurodegenerativas, onde a comunicação entre astrócitos e neurônios é crítica para a progressão da doença”, afirma Ferreira.
O artigo (em inglês) pode ser lido em www.cell.com/cell/fulltext/S0092-8674(20)31081-3.