Por Leandro Altheman Lopes*
Uma semana corrida e não tive tempo de escrever comentando qualquer um dos assuntos do momento. Teve uma contraofensiva ucraniana e o naufrágio do submergível.
Mas nada disso é mais importante, no mundo em que vivo, do que a passagem do homem que tocava o sino da igreja na minha cidade. E por ele, eu paro para escrever.
Afinal, o que é o mundo senão uma abstração? Não vivemos no mundo. Vivemos em nossas aldeias e comunidades. E o senhor Alberto Brito era um dos homens mais importantes da minha aldeia.
Ministro da Eucaristia, seu Alberto era quem tocava o sino da Catedral de Nossa Senhora da Glória, na cidade de Cruzeiro do Sul, no noroeste da Amazônia acreana. Era de onde chamava os fiéis a rezar.
Fez isso durante todos os dias, por mais 60 anos. Ele próprio emprestou sua força braçal para construir aquela catedral. Inspirada em uma grande maloca indígena, mas com a solidez e eficácia da arquitetura alemã, a Catedral se projeta à frente da cidade, tendo ao fundo o imponente rio Juruá, conhecido por ser o mais curvilíneo do mundo.
A figura de seu Alberto descendo o Morro da Glória em direção à Catedral se tornou um dos símbolos de Cruzeiro do Sul. Era como se, com seu ato, seu Alberto trouxesse o sentido de uma comunidade, de pertencimento.
Seus dois filhos homens, Alberto Loro e Alberan Moraes, se tornaram não apenas músicos, mas verdadeiros tradutores de sentimentos difíceis de serem explicados por quem nunca os viveu.
Tem a ver com os banhos refrescantes nos igarapés, com a lembrança de quem somos, a conversa alegre nas esquinas, o encontro com conhecidos no mercado, os sabores dos peixes, a alegria de fazer parte daquele mundo que me acolheu.
Mudei-me para Cruzeiro do Sul no ano de 2000, parcialmente motivado com a noção romântica de ‘salvar a Amazônia’. Mas na verdade, eu é que fui salvo, não pela Amazônia que se vê pelos satélites, mas pela vida humana que pulsa aqui embaixo.
A vida de Cruzeiro do Sul me humanizou e as músicas dos filhos de seu Alberto me ensinaram que sim, é possível se amar a toda essa natureza sem descuidar das pessoas que nela vivem. E que esse amor tem a ver com sentir a brisa refrescante depois da chuva, em conhecer o sabor do açaí nativo, em acertar o cardume do piau com a tarrafa.
Tudo isso é o que nos fazia lembrar o sino da igreja que seu Alberto tocava.
Hoje, estando a alguns milhares de quilômetros, chorei sua partida. Não tanto pelo pesar, mas mais pela saudade profunda de tantas lembranças que seu Alberto evoca.
Seu Alberto tocava o sino, e o sino nos tocava a todos.
Seu Alberto parte desse mundo tendo cumprido sua missão com grande zelo, deixando na Terra, nessa Terra que me fez gente, Cruzeiro do Sul, a lembrança de um milhão de motivos para viver e para agradecer por estar vivo.
* Leandro Altheman Lopes é jornalista radicado em Cruzeiro do Sul