Como é sabido, o São Paulo Futebol Clube nasceu em 1930 da fusão do departamento de futebol do Club Athletico Paulistano com todo o clube da Associação Atlética das Palmeiras. O primeiro clube era o maior campeão do futebol paulista até então, e o segundo time era o detentor do melhor campo de futebol da capital paulista, na Chácara da Floresta.
Por herdar não somente o capital esportivo e patrimonial de dois gigantes do amadorismo, mas principalmente por acolher a paixão de milhares de torcedores destituídos do amor original que nutriam por aquelas equipes, a torcida são-paulina já nasceu volumosa: desde sempre um clube de massa, popular, especialmente pelo clube não se restringir a uma única parcela da população.
O São Paulo não era um clube de apenas uma colônia ou de apenas uma classe social. Não era um clube apenas de um local ou de uma visão de mundo. Era um clube de todos. Como dizia um dos primeiros motes do Tricolor: “São Paulo, em São Paulo, pelo Brasil”.
Isto não é apenas discurso, do tipo que torcedores adversários fazem ao rotular os sócios e dirigentes deste São Paulo recém-nascido como um clube de elite, da sociedade cafeeira paulista do início do século XX. Embora tenha se formado por muitos nomes dotados destas características, o Tricolor sempre foi multicultural e pluralista.
Desde os primeiros jogos do time, jogadores de todas as cores, raças e credos, nacionais ou estrangeiros, estiveram presentes, sem restrições. Bino, um atleta negro, por exemplo, foi figura crucial na conquista do primeiro título estadual da história do Tricolor, em 1931.
A torcida, porém, era um caso ainda mais especial. Como registros de imprensa e de órgãos ligados a adeptos rivais atestam (e isto desde a época do Paulistano), os são-paulinos estavam grandemente dispersos também pelas classes sociais mais baixas e, na verdade, entre os mais desfavorecidos: a população negra, que só 42 anos antes da fundação do Tricolor conseguira obter a abolição da escravidão.
Por isso, os rivais chamavam os torcedores do Paulistano, e depois os são-paulinos, de pipoqueiros – classe que sobrevivia com os rendimentos obtidos da venda de comida na porta dos estádios e que era composta, essencialmente, de negros, que não possuíam muitas opções de emprego naquela sociedade.
Jornal Il Moscone, 2 de fevereiro de 1935
Jornal Il Moscone, 12 de janeiro de 1935
Se o São Paulo nasceu em boa-venturança em 1930, o mesmo não pode ser dito quando ele foi reconstruído do nada, a partir de um porão alugado no centro da cidade, em 1935. O Tricolor renascido é fruto da paixão de seus torcedores, que não deixaram o clube morrer. E mais que isso: reflexo desse povo.
A Gazeta Esportiva, 15 de março de 1937
De 1935 em diante, seus dirigentes passaram a serem conhecidos e a se reconhecerem como “pobretões”, em comparação aqueles provenientes do tradicional Paulistano. Muito é conhecida, inclusive, a história de Porphyrio da Paz, que investia no clube praticamente tudo o que possuía, chegando ao ponto de ser despejado por atrasar com seus compromissos. Nada que não se resolveria com o tempo, enquanto cantarolava aquilo que se tornaria o hino oficial são-paulino.
Correio Paulistano, 14 de maio de 1936
Sabedor que a paixão pelo Tricolor era a única coisa que importava, Porphyrio era um convicto apoiador dos movimentos da causa negra, seja sempre participando de atividades promovidas por tais grupos, seja integrando convivas ao meio são-paulino, ajudando-lhes a tomar espaço no clube e na sociedade.
Um grande parceiro de Porphyrio na missão de reconstruir o Tricolor, e ampliar ainda mais a visão de que o clube era social e racialmente diversificado foi o ilustre e hoje quase esquecido Salathiel Campos.
Correio Paulistano,
Salathiel era negro, pobre e, após ter tido sua entrada na Faculdade do Largo São Francisco negada por sua cor de pele, tornou-se jornalista e começou carreira na área esportiva em 1926. Alguns anos depois publicou “O Homem Negro no Esporte Bandeirante” e passou a chefiar o caderno de esportes do Correio Paulistano, ganhando renome.
Mas foi ainda em 1931, como diretor da Revista O Tricolor – o único veículo oficial do São Paulo com sua torcida, na época –, que Salathiel encontrou o espaço que melhor condizia com sua paixão e trabalho. Ele era a voz do São Paulo.
Em uma homenagem prestada por Porphyrio e inúmeros sócios do Tricolor ao jornalista, em 1939, Sebastião Schiffini, outro importante líder do movimento negro, afirmou:
O discurso completo e toda a cobertura da homenagem estão em link 1 e link 2)
Correio Paulistano, 8 de agosto de 1939
Como um dos fundadores de um dos primeiros movimentos de consciência política negra do país, Salathiel reconhecia a diversidade cultural do Tricolor, como sendo, talvez, a única genuína e com algum escopo naquele período e nas décadas seguintes.
Talvez por isso, a figura do torcedor negro Ditinho, um cartum do artista Gildão, do jornal A Marmita, tenha surgido e se popularizado, tornando-se símbolo e representante tanto do clube como da torcida são-paulina.
Jornal A Marmita, 27 de junho de 1947
Com o apoio massivo e progressivo de todos os setores da sociedade, o crescimento da torcida são-paulina refletiu no crescimento do próprio clube. Então, com a chegada do Diamante Negro, Leônidas da Silva, ocorreu uma revolução no São Paulo. Além de evoluir no aspecto esportivo – com cinco dos mais importantes títulos da época, em um período de sete anos – e no patrimonial, com a compra do terreno do Canindé, a torcida tricolor explodiu de vez.
Leônidas e sua mãe, dona Maria
Talvez o grande símbolo deste período seja a “mascote” Dotô Canindé, criado pelo cartunista Mendes, que representava o torcedor são-paulino, negro, de origem humilde, crescendo na vida, conquistando vitórias e se estabelecendo como um dos grandes.
Frutos dessa política pluralista não tardaram e louros foram colhidos não somente no futebol, como também no atletismo: Adhemar Ferreira da Silva, negro da Casa Verde, conquistaria a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1952 com o escudo do São Paulo e deixaria como herança ao clube duas estrelas douradas referentes aos recordes mundiais obtidos no salto triplo em 1952 e 1955.
Melânia Luz se tornaria a primeira atleta negra a competir pelo Brasil em uma Olimpíada, em 1948. Wanda do Santos também teria a honra de representar o país anos depois, e muitos outros atletas, com o manto são-paulino, se sagrariam campeões em importantes disputas nacionais e internacionais nos anos vindouros.
Ademar Ferreira da Silva, com Wanda dos Santos em destaque; e Melânia Luz
Se o São Paulo é hoje gigante, tanto número de torcedores, quanto como instituição, em muito é devido a essa significante e globalista visão do mundo desde a sua origem, e por contribuições, hoje reverenciadas, daqueles que muito tiveram que batalhar para alcançar méritos e reconhecimentos.
Serginho Chulapa, o maior artilheiro do Tricolor
Como complelmento, seguem imagens que referenciam o histórico acima descrito. Todos os créditos estão nos endereços de cada imagem.
Agradecimentos a Tarif e Machado, que realizaram a pesquisa
inicial que levou a produção deste artigo.