“Agora vão saber onde mora os Arara”, diz enfática Aidê Varela Lima, de 79 anos, matriarca do povo Arara Shawãdawa, que habita a Aldeia Foz do Nilo, na Terra Indígena Arara do Igarapé Humaitá, em Porto Walter, no interior do Acre. No último fim de semana, de 27 a 29, o Festival do Povo Shawãdawa foi um marco importante no processo de revalorização da língua e tradições dessa etnia.
Assim como outros indígenas do estado, os Arara Shawãdawa sofreram com as chamadas correrias na época da exploração da borracha no século 19. Os indígenas eram forçados a cortar seringa para os donos dos seringais, conhecidos na época como patrões. Durante esta exploração, eram proibidos de falar sua língua materna e seguir suas tradições, chegando a ser ridicularizados por isso.
Da mãe, na língua materna, Aidê cresceu ouvindo como seu povo lutou para ter sua terra reconhecida. Com fala compassada, ela conta que a conquista do território indígena foi resultado da luta dos seus parentes.
“Minha mãe contava muita história para nós sobre a nossa luta, acabaram muito com o povo da nossa família, temos poucos, mas ainda estamos aqui. Os patrões não queriam que a gente falasse nossa tradição e com isso a gente perdia e hoje em dia quem fala mais na cultura sou eu”, relembra.
Coube à ela também alertar aos mais novos a importância do resgate de suas raízes. A mãe de Francisca Arara, secretária dos Povos Indígenas do Acre, destacou o esforço que a filha tem feito para preservar as tradições não só do Povo Arara, mas também de todas as etnias do estado.
Este ano, pela primeira vez, o Estado incluiu 23 festivais indígenas no calendário oficial de eventos. Com isso, todos os eventos vão receber apoio e estrutura do governo – uma forma de fortalecer a economia e o etnoturismo na região. Além disso, outro ponto importante é fazer com que os recursos cheguem até as terras indígenas de fato e de direito.
“Já faz tempo que a Francisca disse pra gente não esquecer da nossa cultura, do poder que temos e ela ajuda muito, não tem uma pessoa que faça mais do que a Francisca para os indígenas”, disse.
O resgate da língua e tradições
Esse resgate é no dia a dia, nas festividades, mas principalmente dentro da sala de aula. Atualmente, a Terra Indígena Arara do Igarapé Humaitá tem uma população de cerca de 900 indígenas e 340 alunos da rede estadual de ensino, como explica o assessor pedagógico Cláudio Adão Pereira, que coordena oito escolas e 38 professores indígenas.
A escolarização nessas unidades segue até o ensino fundamental dois e agora eles lutam para implantação de escolas de ensino médio dentro do território indígena.
Por terem sido ridicularizados pelos patrões devido à língua materna, as crianças foram alfabetizadas em português. A língua de origem falada pelos Arara do Acre é classificada como pertencente à família linguística Pano.
No ambiente escolar, os alunos são apresentados à língua materna e tem a cultura reforçada com aulas de campo, que envolvem as brincadeiras tradicionais do Povo Arara. Para isso, as escolas contam com a sabedoria dos mais velhos, que são considerados “os guardiões da memória”, como detalha Cláudio Pereira.
“A gente tem esse propósito de trabalhar a questão da revitalização da nossa língua materna através do trabalho de educação, junto com os professores, os alunos, os pais e responsáveis pelos alunos, a gente tem buscado ampliar muito esse objetivo de revitalizar o nosso conhecimento tradicional que a gente perdeu no passado”, diz.
No cronograma escolar existe a aula de campo, quando os mais novos podem ter contato com os contos, língua e tradições do Povo Arara.
“Essa aula é planejada de acordo com a diversidade da aldeia e em algumas dessas aulas a gente traz os mais velhos para trabalhar com os alunos, contar histórias, informar como foi no passado e como foi essa trajetória. E tem momento também em sala de aula que a gente usa para fazer uma brincadeira, uma festividade para fortalecer essa parte da revitalização da nossa cultura”, esclarece.
Além do programa Prato Extra, que oferece lanche e almoço nas escolas, inclusive nas férias, o governo também atua com a merenda escolar regionalizada.
“Esse é um programa muito bom que a gente fortalece tanto na parte dentro das terras indígenas que é comprado os alimentos para os alunos, como melhora também na situação da qualidade de vida para os próprios alunos em questão de não trazer muito produto industrializado para as terras indígenas, para as escolas, porque isso gera um acúmulo grande de lixo e a gente tem essa preocupação de minimizar essa parte por essa questão ambiental.”
Festivais
Este ano foi o quarto festival do Povo Arara. O evento já ocorreu em 2017, 2018 e 2019, porém, devido à pandemia foi suspenso nos anos seguintes e retornou em 2024 com apoio do governo e sendo o primeiro dos 23 festivais que estão listados no calendário oficial.
“A importância desse festival é revitalizar todos os nossos conhecimentos tradicionais que perdemos, mas que nossa juventude precisa saber. Estamos com quatro festivais, mas o primeiro oficializado com toda a governança do Estado, apoio do governador, prefeito e deputados federais, então esse é mais histórico pra gente que é com mais pessoas, com povo Shawãdawa reunido. Esse festival é uma marca no Povo Shawãdawa, porque estamos revitalizando nossa juventude e mais 500 anos de resistência”, destacou o cacique local, José Maria Pereira Arara.
Orleir Lima de Souza também é professor e diz que tem pensado estratégias para que os mais jovens conheçam a história do seu povo. “Isso é um sonho não só meu, mas do meu povo, que a gente resgate nossa língua e tradições e eu tenho me empenhado para isso, para chegarmos em um objetivo concreto”, completa.
Riqueza na tradição
Um importante ator nesse resgate é Antônio Pereira Lima, primeiro professor da terra indígena. Foi ele quem alfabetizou e orientou os demais professores que hoje levam o trabalho adiante. Durante sua fala, ele destaca que a riqueza de um povo está na preservação da sua cultura e identidade.
“Todos os indígenas têm o direito de viver, conviver com a própria origem, o conhecimento de origem, a sabedoria que Deus nos deu e dá para todos. Estamos buscando repassar nossa história, nossas medicinas e nossas próprias falas”, pontua.
O Povo Arara tem como característica o roçado, a produção de artesanato com miçangas e também a cerâmica. As lideranças esperam que o retorno do festival, agora com o apoio do governo, impacte no aumento de turistas na região e no fortalecimento da cultura.
Rosilda da Silva, representante das mulheres na aldeia, destaca que o artesanato é uma arte passada de mãe para filha e que gera renda para as mulheres da terra indígena, que são responsáveis pela organização da comunidade.
“Nós que ajudamos na limpeza, organizamos a cultura, cantamos e pintamos. Também fazemos os artesanatos, a cerâmica, e tudo que fazemos aqui a gente vende. O artesanato foi ensinado pela minha mãe e eu ensino minhas filhas”, disse.
No festival, é possível também ver as apresentações das brincadeiras. Uma delas é a do jabuti, quando um homem segura o animal enquanto as mulheres tentam tomá-lo. Na arena dos jogos, quem ganha come o jabuti e a vitória sempre é feminina, um recorde que ainda não foi quebrado.
Já o da macaxeira, os homens formam uma corrente e as mulheres precisam desatar esses elos humanos. Tudo é acompanhado com muita torcida e diversão.
Logística e apoio do governo
A aldeia Foz do Nilo fica dentro de Porto Walter, cidade isolada do estado. Para chegar até lá, é preciso navegar pelo Rio Juruá até a cidade e logo depois seguir viagem pelo Riozinho Cruzeiro do Vale. A viagem completa dura cerca de nove horas.
Um traço forte do Povo Arara é a receptividade. Durante a imersão, é possível conhecer a culinária tradicional do povo, seus contos, cantos e trajetória. Sara, a arara resgatada que virou mascote da aldeia, também é uma atração. Livre entre as árvores, vez ou outra ela aparece com cores vibrantes entre o verde das árvores.
Para quem vivencia a experiência, o momento é de aprendizado e conexão com a história do Acre. Pedro Jorge Santos é de Rio Branco e é casado com uma indígena da aldeia Foz do Nilo. Ele já foi três vezes à aldeia, mas é a primeira vez que participa do festival.
“As brincadeiras me chamam mais atenção, porque elas sempre me surpreendem. Já vi outras vezes na aldeia, mas nunca em festival e estou gostando bastante”, diz.
Boucherot Blandine é francesa, mas está visitando o Acre para conhecer. Ela tem ficado em Santa Rosa do Purus, já foi no festival dos Puyanawa e ficou interessada em conhecer a cultura dos Arara.
“Eu adoro essa cultura, por isso resolvi visitar o Acre e sempre vou em cidades isoladas para conhecer mais. É muito diferente da França porque o Acre tem mais humanidade. No meu país, é cada um no seu apartamento, e aqui a receptividade é muito grande”, disse.
O secretário de Estado de Turismo e Empreendedorismo, Marcelo Messias, destacou a importância da inclusão dos festivais tradicionais no calendário geral do Estado e de como isso impacta na cultura e economia da região.
“Foi uma grande conquista. Nunca tinha entrado um festival dentro do calendário cultural do Estado e este ano, não só entrou como conseguimos incluir 23 festivais. A gente só tem que agradecer ao governador que não tem medido esforços para que nosso etnoturismo cresça cada vez mais, ganhe cada vez mais força. Ano passado, o aumento que tivemos de turistas estrangeiros, 80% foi por conta do etnoturismo. Todos os estados da Amazônia têm seu etnoturismo, mas nenhum tem igual ao nosso. É uma coisa diferenciada que renova nossas energias”, pontua.
Francisca Arara, secretária dos Povos Indígenas do Acre, diante das autoridades, reforçou a importância de fortalecer os povos originários, considerados guardiões da floresta no sentido da preservação ambiental.
Na abertura do festival, estavam presentes, além do governador Gladson Cameli, o secretário de Turismo, Marcelo Messias; o prefeito de Porto Walter, César Andrade; o deputado federal Zezinho Barbary e o presidente do Instituto de Mudanças Climáticas e Regulação dos Serviços Ambientais (IMC), Leonardo Carvalho, e a vereadora de Porto Walter Cleide Silva.
Em sua fala, a secretária destacou que se não houver uma política de preservação dos recursos naturais, futuramente o ser humano deve sofrer com escassez. “Daqui alguns anos, vamos ter dinheiro, mas não vamos ter água para comprar”, pontuou.
Francisca destacou também a importância da visibilidade da cultura indígena para que as pessoas conheçam a particularidade do Povo Arara.
“Sei que a gente está fazendo a coisa certa e na parte do fortalecimento da cultura, do turismo, este ano conseguimos colocar 23 festivais no calendário do estado, estes festivais são onde a gente resgata a cultura, a língua, as brincadeiras, rituais, a culinária, o reencontro com parceiros municipais, deputado federal e, pela primeira um governador do estado. Nosso povo Arara é o único em Porto Walter, somos só nós colados com outros municípios, outros povos e o governador colocar não só a pauta dentro do calendário do estado, mas com apoio e incentivo dos combustível, porque é uma logística grande pra chegar até aqui, é muito importante”, finaliza.
Ao chegar à aldeia, o governador Gladson Cameli foi recepcionado pelas lideranças, com cantos e dança e foi seguido até o centro da festividade. Em sua fala ele reforçou seu comprometimento com o povo indígena para o fortalecimento da cultura.
“Estou emocionado. Aqui tem uma energia, e me proponho a vivenciar essa experiência para que eles [indígenas] saibam que são o termômetro do mundo. Eu não vou decepcionar os povos da floresta, os povos indígenas, e vamos fazer tudo aquilo que pudermos para que a gente possa cuidar das pessoas. Nós somos iguais”, disse.