A cantora, compositora e psicóloga, Tatiana Dias Gomes, de 40 anos, tinha apenas 13 anos quando o avô, o romancista, dramaturgo e autor de telenovelas Dias Gomes (1922-1999), morreu. Criador de alguns dos personagens mais populares da história da telenovela brasileira, seu avô gostava muito de se fantasiar de Papai Noel nas comemorações do Natal em família.
“Ele entrava totalmente no clima de Natal e imitava o Papai Noel, fazia voz de Papai Noel. Naquela época não tinha celular e ele ligava para a gente [em um telefone fixo] de um cômodo para o outro. A gente atendia e ele fazia: ‘ho, ho, ho. Aqui é o Papai Noel. Eu estou indo praí’. E ele me falava: ‘Tati, você pediu uma boneca?’. A gente acreditava, e todas as crianças ficavam muito animadas. E a gente ficava esperando o Papai Noel. Era um dia muito mágico e ele gostava dessa magia, dessa fantasia”, conta a neta.
Neta de Dias Gomes, Tatiana Dias Gomes, com o avô – Foto: Tatiana Dias Gomes/Arquivo pessoal
A última vez em que ela viu o avô foi em um aniversário e ela tinha acabado de gravar umas músicas com seu pai, como uma forma de brincadeira.
“A gente gravou em uma fita [cassete] e levamos para ele escutar em um walkman [antigo tocador portátil de música]. Aí eu mostrei para ele. Ele ficou superanimado e começou a mostrar aquilo para um monte de gente: ‘olha minha neta cantando!’, dizia ele. Fico muito feliz que minha última lembrança com ele tenha sido tão feliz”, relembrou Tatiana.
Dias Gomes criou personagens consagrados como Sinhozinho Malta, Viúva Porcina, Odorico Paraguaçu, Dirceu Borboleta e Zeca Diabo. Um de seus textos mais famosos é O Pagador de Promessas (1960), que foi adaptado ao cinema por Anselmo Duarte, em 1962, tornando-se o primeiro filme brasileiro a receber uma indicação ao Oscar e o único a ganhar a Palma de Ouro em Cannes. Ele também foi autor de vários sucessos na TV brasileira, escrevendo novelas como O Bem-Amado (1973), Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (1985), que chegou a ser censurada pela ditadura militar.
Em toda a sua carreira, Dias Gomes escreveu 33 peças de teatro, oito livros, 14 telenovelas, cinco minisséries e dois seriados. Em 1991, ele passou a ocupar a cadeira 21 na Academia Brasileira de Letras (ABL).
“Difícil escolher, mas acho que meus personagens preferidos dele são a Branca Dias, de O Santo Inquérito, e o Zé do Burro, de O Pagador de Promessas, porque são dois personagens muito puros. Acho muito interessante a forma como ele colocou isso. São dois personagens muito ingênuos, que retratam a intolerância religiosa e foram punidos por isso. E são dois personagens muito atuais também”, diz a neta.
Dedicatória de Dias Gomes para a neta, no livro Odorico na Cabeça: “Para minha neta Tatiana, com muitos beijos e a esperança de que, quando crescer goste dessas histórias do vovô Dias” – Foto: Tatiana Dias Gomes/Arquivo pessoal
Extremamente populares, os personagens criados por Dias Gomes falavam intimamente sobre a realidade do país. Característica que chamou a atenção da ditadura militar, que o considerava um “subversivo” e acabou censurando várias de suas obras.
“Ele usou a arte para transformar a nossa sociedade para melhor e para ela refletir sobre seus preconceitos, suas intolerâncias e sobre a própria censura. E ele fez isso em um momento dificílimo, de muita repressão. Ele foi muito corajoso. Ele usava muito do humor para retratar tudo isso”, ressaltou Tatiana. “Acho muito inspirador em como ele usou a arte como ferramenta de transformação”, completou.
É por isso que seu legado, diz a neta, ultrapassa gerações. “Ele tem uma importância enorme para a nossa história. Suas obras são atemporais, elas retratam o que é o nosso país, o povo brasileiro e a política brasileira. Elas retratam o que nós somos. E todas essas obras, se vocês montá-las agora, parece que foram escritas ontem”, diz a neta.
Flipelô
Neste ano, Dias Gomes será homenageado na Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô), maior evento cultural literário da Bahia. A festa está marcada para o período de 6 a 10 de agosto, no Pelourinho, em Salvador. A programação é toda gratuita, e a expectativa dos organizadores é que cerca de 250 mil pessoas transitem pelos mais de 150 espaços públicos e privados que serão ativados para a Flipelô.
A homenagem ao escritor terá início já na abertura do evento, com uma apresentação teatral baseada na peça O Pagador de Promessas. O musical Os Dias Bem-Amados: Vida e Obra de um Autor Baiano será apresentado no dia 6 de agosto, às 19h, no Palco Flipelô, no Largo do Pelourinho.
Tatiana Dias Gomes homenageará o avô durante a Flipelô – Foto: Tatiana Dias Gomes/Arquivo pessoal
A homenagem ao escritor também contará com a participação da neta, que vai se apresentar na Casa Motiva, na Vale do Dendê, no dia 9 de agosto, ao lado de Leo Martins. Esta será a primeira participação de Tatiana Dias Gomes na Flipelô, e o show será embalado por trilhas de novelas.
“Ver meu avô sendo homenageado na Flipelô é uma emoção muito grande. Para mim vai ser uma honra estar presente. Estou muito feliz com o convite de cantar. Vou cantar ao lado do meu marido, o Leo Martins. Vamos cantar músicas de novelas do meu avô e de peças também. Estou muito feliz de ver as mensagens e os textos dele espalhados por aí com tanta admiração, respeito e carinho.”
Vida de artista
Tatiana canta desde pequena. “Estava decidido para mim, desde que eu me entendo por gente, que eu ia ser cantora”, disse ela à Agência Brasil. Nascida em uma família de artistas, escritores e dramaturgos, ela também é neta de Janete Clair, autora de sucessos como Pecado Capital, Irmãos Coragem, Selva de Pedra e O Astro.
“Tenho uma lembrança também que é muito especial, que aconteceu no lançamento de uma biografia da minha avó Janete, escrita pelo Artur Xexéo. Eu me lembro que, quando cheguei lá, vi meu avô e fui falar com ele. E eu percebi que ele estava meio mexido. Isso me surpreendeu porque ele era muito na dele e, quando ele me viu, ele ficou emocionado e me falou que eu estava muito parecida com a minha avó. Isso mexeu comigo e me deixou muito emocionada”, contou.
Tatiana não chegou a conhecer a avó. Janete Clair morreu em 1983, dois anos antes de ela nascer. Mas a neta sempre sentiu orgulho da família. “Eles ficaram marcados na história do nosso país e na história de muitas pessoas”, diz.
A programação da Flipelô pode ser consultada no site da festa literária.