Nenhuma outra cleptocracia do mundo (seguramente) começou o ano de 2016 com todas as suas máximas autoridades sob pesadas investigações ou acusações criminais, políticas e/ou eleitorais. Isso tem tudo a ver com a pouco visível delinquência econômica cleptocrata (DEC), que é historicamente inerente ao “sistema” econômico e político nacional, repleto de barões ladrões que dominam ou governam o Estado brasileiro.
As pilhagens, a corrupção e as roubalheiras praticadas pelos poderosos (do Estado e do Mercado – industrial, comercial, financeiro e agronegócio – concertadamente), não são “ilegalidades” anormais, excepcionais, excrescentes ou acidentais: fazem parte do processo de formação e estratificação social, leia-se, da ordem social aqui implantada[1]. Tudo parece palatável porque “normalizadas” (as ilegalidades).
É imperiosa a obrigação de rompermos nossa letargia de rebanho (Nietzsche), que tudo ignora ou a tudo teme e espera, por não ser livre (Nikos Kazantsakis). Analfabetismo, clientelismo, fisiologismo (toma lá dá ca): chagas imorredouras do pecado original, que não passam de sintomas de uma ordem social caracterizada pela desigualdade extrema, hierarquização institucionalizada, diferenciação racista, cultura extrativista, relação colonialista de dominação e submetimento e suas típicas integrações, cooptações e exclusões.
A delinquência econômica cleptocrata (DEC)– dos poderosos – está para o sistema político e econômico como o ar está para nossa respiração. A presidente (a) Dilma está com pedido de impeachment em curso (porque teria cometido vários crimes de responsabilidade). O STF fará em breve os últimos ajustes procedimentais. Pesa-lhe, ademais, uma baixíssima aprovação popular (perto de 10%).
Uma das poucas presidências que não diz Non Ducor Duco (não sou conduzido, conduzo). Precisamente o contrário é a realidade. Mais: em agosto assume a presidência do STF a ministra Cármen Lúcia, que é uma das juízas mais independentes e lúcidas do Brasil. A brisa suave do estilo Lewandowski está terminando. A previsão é de tempos mais difíceis para Dilma.
O vice-presidente Michel Temer é acusado de ter beneficiado, graças a uma emenda parlamentar apresentada por Eduardo Cunha, o Grupo Libra, que foi um dos principais doadores dele e do seu partido em 2014 (o Grupo obteve uma vantagem inédita de renovar contratos portuários mesmo tendo dívida milionária com a União)[2]. Quem tem dívida com a União não pode renovar contratos. Privilégio. Melhor: pilhagem “dentro da lei”, que é uma das formas da disseminada delinquência econômica cleptocrata (DEC). A mentalidade é extrativista. Temer já se transformou em um ex-futuro presidente do Brasil. Se queimou muito antes de dar a largada.
No TSE os mandatos dos dois (Dilma e Temer) está sendo questionado pelo PSDB, que pede a impugnação por abuso de poder econômico e político, uso de propinas da Petrobras para financiamento das campanhas etc. Detalhe: em maio assumirá a presidência do TSE o arquidesafeto do PT, Gilmar Mendes. Nada é tão ruim que não possa piorar para o lulopetismo.
Renan Calheiros (presidente do Senado) está sendo investigado pela PF (5 investigações) e ainda tem denúncia no STF pendente de recebimento. A empreiteira Mendes Júnior, em troca de emendas favoráveis, pagava à jornalista Mônica Veloso, em dinheiro corrente, o valor de uma pensão mensal da filha que o senador tivera com ela num relacionamento extraconjugal. Imputam-se os crimes de peculato, falsidade ideológica e uso de documentos falsos. Toda democracia impregnada exaustivamente da delinquência econômica cleptocrata (DEC) tem os bandoleiros que merece. Porque eles não tomaram o poder com arma na mão: foram eleitos.
Eduardo Cunha (presidente da Câmara) tem denúncia no STF, pedido de afastamento e agora foram descobertas mais cinco contas clandestinas na Suíça (nove no total). Seus crimes econômicos são: evasão de divisas, sonegação fiscal, organização criminosa, corrupção e lavagem de dinheiro. Na Comissão de Ética da Câmara tramita processo para sua cassação por falta de decoro. Seus asseclas apresentam obstáculos reiteradamente. Prova de que a delinquência econômica cleptocrata (DEC)é algo institucionalizado desde a colonização. Jesus. Com é potente, mas não pode tudo. Todo império um dia tem sua queda.
Apesar de condenado pelo “tribunal da opinião pública”, o ardiloso Eduardo Cunha sempre encontra furos regimentais na Comissão de Ética e mostra que tem munição e ganas para o exercício do poder. Tudo isso é feito nas barbas do STF, até aqui silente e omisso. Em novas eleições, sua chance de recondução ao cargo público é imensa. Muitos barões ladrões de mais alto calado continuam na vida pública há décadas. A corrupção é imoral, mas o povo tolera.
Os ex-presidentes Collor, FHC e Lula foram citados em vários documentos ou delações premiadas[3]. Além deles também foi mencionado Jaques Wagner (Chefe da Casa Civil)[4].
Lula teria dado ascendência a Collor na BR Distribuidora, em troca de apoio político no Congresso Nacional; Cerveró (ex-diretor da Petrobras) afirmou que Lula indicou a construtora WTorre Engenharia para uma obra no centro do RJ; documentos encontrados no gabinete do senador Delcídio envolveriam Wagner, o governo de FHC e Lula; Cerveró ainda disse que Wagner recebeu dinheiro para sua campanha de 2006; este ainda manteria um esquema de corrupção com Leo Pinheiro, envolvendo fundos de pensão (da OAS); consoante os papeis apreendidos, uma petrolífera argentina (Pérez Companc) foi adquirida pela Petrobras e isso gerou propina de 100 milhões de dólares ao governo do tucano FHC; FHC admite em novo livro negociatas na petrolífera brasileira (como já admitiu que seu segundo mandato foi “comprado”, sem dinheiro dele, mas foi “comprado”); Cerveró também afirmou que Collor confirmava a participação de Dilma na indicação de cargos na BR Distribuidora”[5].
Tudo indica que a confusão de 2015 vai perdurar em 2016. Até parece que para melhorar, o Brasil ainda ver ter que piorar muito. O consolo: não há bem que sempre dure, não há mal que nunca acabe. Dificilmente a pauta do governo (CPMF e Reforma da Previdência) vai avançar. Tampouco existe oposição com iniciativa válida. A delinquência econômica cleptocrata (DEC), os erros graves de governança e a apuração da Lava Jato pararam o País.
Caímos em uma “armadilha social” (ver Bo Rothstein, o criador da teoria do Big Bang, contra a corrupção[6]), caracterizada pela desconfiança generalizada. Ninguém confia em mais ninguém. Ninguém tem expectativa comportamental saudável em relação ao outro. Todos estariam no jogo para pilhar, corromper e roubar. É a sensação generalizada.
A política não se move e a economia não anda. Aliás, anda para trás. A delinquência econômica cleptocrata (DEC) chegou ao extremo de estagnar a nação. O árbitro desse jogo somente poderá ser o povo (por força do regime democrático). Seu voto pode mudar alguma coisa. Mas o que faremos até 2018?
Não há como fazer com que a Lava Jato termine logo seus trabalhos. A Justiça tem seu tempo (que é diferente do tempo da mídia e da política). Ninguém sabe quem estará dentro ou fora do jogo político de 2016 e de 2018. No atual contexto da Justiça criminal, inusitadamente os barões ladrões da delinquência econômica cleptocrata (DEC) tanto sonham com a permanência no Congresso Nacional como contam com o pesadelo de uma cela de presídio.
No limite, a situação se tornou tão instável que não sabemos se Lula e Aécio Neves serão adversários políticos em 2018 ou companheiros de cela. Claro que há diferença entre as acusações contra os dois. Mas a cada dia surgem novas delações e imputações. A vida dos políticos brasileiros ficou como as nuvens: em cada momento tem uma configuração.
A esse ponto chegou o Brasil, depois de séculos de delinquência econômica cleptocrata (DEC) e de votações equivocadas, que produziram incontáveis barões ladrões (saídos do Estado e do Mercado). Depois de muitos anos de tramas, traquinagens, fraudes, conluios, saques, pilhagens, corrupção e roubalheiras, o Brasil está ficando sem opção política que ilumine um bom e seguro caminho. O sistema está inteiramente carcomido. A Itália, depois da Operação Mãos Limpas, abriu espaço para gente de fora (um outsider). Caiu nas mãos sujas de Berlusconi. Não existe vacina para esse tipo de peste.
É incomensurável a teia de interesses privados extrativistas que transitam por dentro do Estado patrimonialista brasileiro (em sentido horizontal, vertical e diagonal).
A habitual delinquência econômica cleptocrata (DEC) coliga o novo com o arcaico, dentro de um modelo macroeconômico extrativista e patrimonialista, para fazer preponderar alguns interesses corporativos frente aos dos concorrentes ou mesmo frente às classes dominadas.
Construir um barão ladrão não é difícil. Forjar todo um “sistema” de delinquência econômica cleptocrata (DEC) que, num determinado momento, macula a honorabilidade de todas as máximas autoridades de um país já é obra muito mais complexa. Não se faz isso da noite para o dia (nem em sete dias).
O terrível é saber que toda essa realidade pregnante nunca chamou a atenção das teorias sociológicas tradicionais[7], que sempre centraram o foco mais nas chamadas “sociedades orgânicas” (que assimilam os problemas) que no conceito de ordem social implantada de cima para baixo, há séculos, com toda sua hierarquização, racismo e desigualdade extrema.
Darcy Ribeiro indagava: “Por que o Brasil ainda não deu certo?”[8]. Se olharmos o Brasil desde a perspectiva da ordem social imposta (injusta, corrupta e impregnada de delinquência econômica), sem idealizá-lo – como uma sociedade que racionalmente promove a cooperação entre as pessoas -, deixaremos de ser principiantes. Por sinal, Tom Jobim já havia dado o tom correto: “O Brasil [por ser muito complexo] não é para principiantes”.
[1] Ver PEGORARO, Juan S. Los lazos sociales del delito econômico y el orden social. Buenos Aires: Eudeba, 2015, p. 15.
[2] Ver http://política.estadao.com.br/noticias/geral,grupo-doador-de-campanha-de-temer-recebe-beneficio-de-aliado-em-porto,10000006082, consultado em 15/01/16.
[3] Ver http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/13/política/1452703122_150703.html, consultado em 18/01/16.
[4] Ver http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/13/política/1452703122_150703.html, consultado em 18/01/16.
[5] Ver http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/13/política/1452703122_150703.html, consultado em 18/01/16.
[6] Ver http://www.pol.gu.se/digitalAssets/1350/1350652_2007_3_rothstein.pdf, consultado em 30/12/15.
[7] Ver PEGORARO, Juan S. Los lazos sociales del delito econômico y el orden social. Buenos Aires: Eudeba, 2015, p. 16.
[8] Ver RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 13.