A substância conhecida como fosfoetanolamina sintética também chamada de “droga da USP” ou “pílula anti-câncer” ganhou destaque por ser divulgada como uma promessa de cura para todos os tipos de câncer. A substância começou a ser produzida no laboratório do Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP) e distribuída no campus da universidade gratuitamente a pacientes que a solicitassem apesar de não ter sido testada cientificamente.
No entanto, a comunidade médica e científica é categórica em afirmar que a fosfoetanolamina sintética sequer pode ser chamada de “medicamento” pois seus benefícios para o tratamento do câncer não foram comprovados.
Desde 2016 iniciaram-se no país os estudos científicos para comprovar a eficácia da fosfoetanolamina no tratamento do câncer.
Os estudos ainda estão em andamento e ainda não foram finalizados. Porém, a partir de 13 de abril de 2016, foi aprovada lei que libera a fabricação e distribuição da fosfoetanolamina e o uso da substância fosfoetanolamina por pacientes diagnosticados com câncer mesmo antes do registro da Anvisa.
As preocupações dos médicos oncologistas sobre o uso indevido da substância são muitas: uma vez que não foi estudada e testada o suficiente, a fosfoetanolamina sintética pode provocar efeitos colaterais ainda desconhecidos, além disso a droga pode gerar uma falsa esperança de cura aos pacientes e até mesmo ocasionar o abandono do tratamento convencional, colocando em risco a vida das pessoas.
A fosfoetanolamina é uma substância produzida naturalmente pelo corpo humano nas células de alguns músculos específicos e no fígado, mas passou a ser reproduzida no laboratório da USP.
Há poucas informações sobre como a substância atuaria no tratamento do câncer.
O pouco que se sabe é que ela poderia agir dentro da carcinogênese, ou seja, poderia ter alguma influência na formação do tumor. Outra hipótese é que a fosfoetalonamina sintética teria ação anti-inflamatória e apoptóticas, em outras palavras, seria capaz de “matar” as células cancerígenas. Porém, todas essas são teorias não foram comprovadas e ainda estão no campo da suposição.
Ausência de evidências
A oncologista Pilar Estevez, coordenadora do serviço de oncologia clínica do Instituto do Câncer de São Paulo Octavio Frias de Oliveira (Icesp), explica que as análises realizadas até agora não são suficientes para fornecer as evidências necessárias para comprovar a segurança e eficácia da fosfoetanolamina sintética.
Até o momento, os estudos realizados com a fosfoetanolamina registrados na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) foram feitos exclusivamente em camundongos e em algumas culturas de células humanas. “Por enquanto, ela é um fármaco, não podemos nem classificá-la como medicamento.
Não sabemos qual é a eficiência dela, quais tumores teriam sensibilidade a ela, tampouco a dose.
Existem muitas perguntas que precisam ser respondidas”, aponta a especialista.
Falta comprovação clínica e científica
O caminho que uma nova droga percorre até ser disponibilizada para um paciente no tratamento de alguma doença é longo e complexo.
Até que um novo medicamento contra o câncer possa finalmente chegar nas farmácias, hospitais e postos de saúde podem levar mais de 10 anos, 12 anos, às vezes mais que isso. “Para que um medicamento seja aprovado e lançado no mercado, ele precisa passar por etapas muito específicas de análises, primeiramente, em tubo de ensaio, usando culturas de células e animais.
E posteriormente, se for comprovada uma evidência de que ela pode ter benefícios para os pacientes, ela passará por testes clínicos de fase 1 a 4, ou seja testes realizados em seres humanos”, explica o oncologista clínico Hezio Jadir Fernandes Júnior, diretor do Instituto Paulista de Cancerologia.
Cada etapa dos testes vão avaliar a eficácia do medicamento no combate a doença, toxicidade (segurança), dosagens e efeitos colaterais no curto e longo prazo.
Os medicamentos oncológicos estão entre os maiores causadores de efeitos colaterais e saber ao certo quais são esses efeitos é umas das maiores preocupações dos oncologistas durante o tratamento. “Todos os medicamentos que prescrevemos, sejam endovenosos ou orais, causam efeitos colaterais e nós precisamos estar cientes desses sintomas para não causarmos complicações e mais problemas ao paciente.
Quando receitamos um tratamento sabemos como esse medicamento será aplicado, a dosagem indicada e quais sintomas o paciente poderá apresentar”, explica Fernandes Júnior.
Em alguns casos, o medicamento possui uma quantidade tão alta de efeitos colaterais que é preciso interromper o tratamento. “Existem algumas drogas que não vingaram justamente por causa da toxicidade.
É preciso haver um equilíbrio entre os efeitos colaterais e a eficiência do medicamento. De nada adianta uma droga ser promissora e não ser tolerável”, ressalta Pilar.
Um único remédio para o câncer é improvável
Existem mais de 200 tipos diferentes de câncer e a neoplasia pode se desenvolver em qualquer órgão do corpo e a partir de quase qualquer tipo de célula existente no organismo. Sendo assim, é importante ressaltar que cada tumor possui sua própria assinatura genética e biomolecular. Isso faz com que respondam aos tratamentos de forma diferentes.
Os grandes avanços no campo da medicina oncológica dizem respeito a descoberta de tratamentos cada vez mais específicos e precisos para cada tipo de tumor. “Por isso é difícil acreditar que uma única droga pode ser eficaz contra qualquer tipo de câncer”, afirma o oncologista Volney Soares Lima, do Oncocentro Minas Gerais. De acordo com ele, mesmo os tratamentos usuais como a quimioterapia, radioterapia e hormonioterapia possuem composições diferentes para tratar determinado tipo de câncer.
Mais estudos
O especialistas entrevistados pelo Minha Vida concordam que a fosfoetanolamina sintética merece ser estudada e não descartam que a substância possa se tornar uma forma de tratamento contra o câncer. “Pode ser que no futuro ela venha a se tornar um medicamento efetivo contra o câncer. Mas antes, ela precisa ser aprovada por órgãos e agências regulatórias. Precisamos de evidências para decidir os rumos que a droga irá tomar”, explica o oncologista Volney Soares Lima.
Para o oncologista clínico Hezio Jadir Fernandes Júnior, diretor do Instituto Paulista de Cancerologia Fernandes Júnior, é preciso ainda mais. São necessários estudos de cooperação envolvendo diferentes entidades de diferentes países. “Precisamos usar a globalização do conhecimento e passar nossas descobertas adiante, manter comunicação com centros de pesquisa, para obter diferentes informações e detectar benefícios e falhas de uma substância”, completa.
A equipe de reportagem do Minha Vida entrou em contato com o químico Gilberto Orivaldo Chierice, Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP) para saber mais informações sobre a fosfoetanolamina sintética. Por questões judiciais, ele foi orientado por seus advogados a não conceder entrevista.
Entenda o caso da fosfoetanolamina
Final da década de 1980
A substância fosfoetanolamina começa a ser produzida pelo químico Gilberto Orivaldo Chierice, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP), e distribuída no campus da universidade gratuitamente aos pacientes que buscavam um tratamento complementar ou alternativo.
Junho de 2015
A USP interrompe a distribuição da fosfoetanolamina e os pacientes entraram na justiça para solicitar as cápsulas.
Outubro de 2015
O Supremo Tribunal Federal autoriza a distribuição da fosfoetanolamina para as pessoas que entraram com pedido na justiça.
Na mesma época, a USP se manifesta por meio de comunicado oficial alegando que “…essa substância não é remédio. Ela foi estudada na USP como um produto químico e não existe demonstração cabal de que tenha ação efetiva contra a doença”.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) firma parceria com seis laboratórios na área de fármacos e medicamentos para aprofundar os estudos em torno da fosfoetanolamina.
A revista científica Nature publica um editorial ressaltando os perigos envolvidos na distribuição da fosfoetanolamina.
Cinco hospitais da rede estadual de São Paulo anunciam que realizarão testes para comprovar a eficácia da fosfoetanolamina e encabeçado pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).
Janeiro de 2016
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) lançou o site para informar a população sobre os avanços na pesquisa sobre fosfoetanolamina.
Fevereiro de 2016
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, anuncia que o Laboratório PDT Pharma, de Cravinhos, será o responsável pela sintetização da substância fosfoetanolamina para testes no tratamento do câncer. A substância será analisada no tratamento da doença em até mil voluntários.
O Instituto Nacional do Câncer (Inca) emite parecer técnico sobre a fosfoetanolamina sintética.
De acordo com a instituição, “qualquer decisão terapêutica relacionada à substância, antes da realização de pesquisas controladas? e somente ao término dos estudos pré-clínicos e clínicos será possível elencar as possibilidades ou não de uso do medicamento como ação anticancerígena”.
Março de 2016
A Câmara dos Deputados aprova o projeto de lei que permite a fabricação, distribuição e uso da fosfoetanolamina. Pelo projeto de lei poderão usar a substância desde que exista um laudo médico que comprove a doença.
Além disso, a proposta também permite a fabricação da fosfoetanolamina sintética mesmo sem registro sanitário.
Pesquisadores responsáveis por realizar os primeiros testes da fosfoetanolamina divulgam um parecer informando que a medicação apresentou baixo grau de pureza e demonstra pouco ou nenhum efeito sobre as células tumorais. O documento também mostra que o desempenho é muito inferior ao das substâncias disponíveis há décadas no mercado.
O químico que iniciou os estudos da fosfoetanolamina sintética Gilberto Chierice e o pesquisador Durvanei Augusto Maria, ligado ao Instituto Butantan, entram com um ofício na Defensoria Pública da União contestando os testes que apontaram desempenho insatisfatório da substância.
O Senado aprova o Projeto de Lei da Câmara que autoriza pacientes com câncer a usarem a fosfoetanolamina sintética antes de seu registro na Anvisa.
O projeto foi aprovado na Comissão de Assuntos Sociais no dia 17 de março e seguiu para sanção presidencial.
A Anvisa recomenda que a presidente Dilma Rousseff vete o projeto de lei, pois seria um precedente muito perigoso liberar a substância antes da realização dos estudos clínicos de segurança e eficácia.
Em abril de 2016
O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski determina que a USP deve fornecer a fosfoetanolamina somente enquanto houver o composto no estoque. Depois disso a distribuição poderá ser suspensa devido ao fato de que o fosfoetanolamina não possui registro na Anvisa para ser produzido e distribuído.
Fonte: Minhavida.com.br