Filho de pais desempregados, um goleiro de nove anos viu o sonho de ser jogador ficar ameaçado. O clube no qual atuava, o Vasco, queria que ele mudasse do futsal para o campo. Mas mandar o menino aos treinos sem a ajuda de custo de R$ 600 que o salão proporcionava seria impossível para aquela família de Dr. Laureano, em Duque de Caxias. Sem o auxílio para transporte, Hugo Souza deixou o Vasco. Àquela altura, Neneca, como é apelidado, não poderia imaginar que cerca de 12 anos depois já teria uma convocação para a seleção brasileira, um histórico consolidado na base e uma atuação inesquecível pelo Brasileirão com a camisa do Flamengo. Se não fosse a falta dos R$ 600, talvez ele hoje estivesse no rival em vez de ser exaltado pelo que fez diante do Palmeiras, neste domingo. Além da atuação, Hugo chamou a atenção pela entrevista após a partida. Emocionado, ele lembrou que fizera a primeira partida sem o pai, Jorge, que morreu em 10 de março. – Estava há nove meses sem atuar. A diferença de última partida para esse é que meu pai estava me assistindo. Hoje, eu não tenho mais ele. Foi meu grande incentivador – disse à TV Globo. Hugo começou a jogar bola de quatro para cinco anos. Curiosamente, o título que guarda com carinho dos primeiros capítulos da vida é um estadual de futsal diante do Flamengo. – Fomos campeões na prorrogação, 5 a 3. Tinha oito anos. Foi meu último ano no Vasco – contou ele, em conversa com O GLOBO no fim de 2018, só publicada agora. A história no Vasco mudou quando o clube trouxe para o time de futsal o goleiro justamente do rival rubro-negro. Na ocasião, o clube também passava por uma transição política. – Meu pai foi perguntar o motivo e disseram que eu teria que ir para o campo. Só que na época não tinha condição, já que meus pais estavam desempregados. No futsal do Vasco eu tinha uma ajuda de R$ 600 para eu ir aos treinos. Indo para o campo, não tinha ajuda de custo. Fiquei triste porque não conseguiria continuar – relata o goleiro. Hugo tem dois irmãos mais velhos por parte de pai e uma irmã mais nova, fruto do relacionamento entre Jorge e a mãe do goleiro. O pai era supervisor de vendas, mas a crise bateu quando ele perdeu o emprego. Após sair do Vasco, o goleiro, que jura ter coração flamenguista desde pequeno, passou alguns meses em escolinhas. Até que, em março de 2009, seu Jorge recebeu a ligação do pai de um outro menino do futsal do Vasco. Ele ficou intrigado ao saber que Hugo estava sem clube e fez uma ponte com o coordenador do futsal do Flamengo na época, Tito. – Perguntei ao Tito quando começaria o teste, ele já me respondeu que estava no grupo. Comecei no futsal e, no ano seguinte, já estava no campo – disse Hugo. Para esse caminho ser percorrido, o Flamengo deu um RioCard ao goleiro e ao pai. A rotina não poderia ser feita sem companhia. E teve um período em que uma carona ajudou. Um colega, Gabriel Magalhães, vinha de Teresópolis e o pegava pelo caminho. Isso durou cerca de dois anos e meio. Até Gabriel se mudou para o Recreio. – Passei a ter que pegar ônibus às 4h em Caxias para chegar ao Ninho – relatou. O trajeto mudou para Hugo aos 15 anos, quando passou a morar no CT do Flamengo. Foram três anos tendo o Ninho como casa, literalmente. Pra encurtar a distância, a família conseguiu alugar uma casa na região do Riocentro. A residência em Caxias foi alugada para ajudar nos custos. Com a valorização no Flamengo, Hugo conseguiu uma casa melhor em Vargem Grande, mantendo-se perto do lugar onde se desenvolveu como jogador. Na base do Flamengo, Hugo conviveu com goleiros como Yago Darub e Gabriel Batista. Nos últimos dois anos, ele foi e voltou da base algumas vezes, até ter a chance deste domingo, contra o Palmeiras, diante dos desfalques causados pela Covid-19 e lesões. O contrato atual com o Fla expira em 30 de setembro de 2023 e foi assinado já depois da surpreendente convocação para a seleção principal. Em 2018, Tite levou como terceira opção para o gol alguns nomes da seleção sub-20. Hugo foi o primeiro deles. Neneca se destaca pela estatura (1,96m), mas tem agilidade para defender bolas rasteiras, como no principal lance do empate em São Paulo. Ele espalmou uma cabeçada de Luiz Adriano à queima roupa. Embaixo das traves, Hugo tenta desenvolver um estilo que mescla características dos ídolos. – Júlio César, Buffon e Dida são os que eu tenho como referência. Procuro fazer algumas coisas. Goleiro é muito detalhista. O Dida tem uma leitura muito boa em pênalti, principalmente. Buffon tem uma velocidade de reação absurda. Júlio César é Júlio César: um goleiro técnico, rápido, uma referência para todos – explica ele. Hugo viu de perto as glórias do Flamengo em 2019. Mas a meta é fazer parte da história. Ele não precisa mais dos R$ 600. Mas o sonho é o mesmo daquele garoto tão amado por seu Jorge, o Neneca original, e toda a família. Fonte: O Globo Online
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