Gabriel Pierin, do Centro de Memória
No dia 27 de setembro de 1914 Arnaldo Silveira e Adolpho Millon, jogadores e fundadores do Santos, entraram para a história como campeões da Copa Roca, primeiro troféu da Seleção Brasileira, ao vencerem a Argentina por 1 a 0.
Uma semana antes, às nove horas da manhã de domingo, dia 20, a delegação nacional desembarcava no Porto de Buenos Aires, recepcionada por dirigentes argentinos e muitos aficionados pelo futebol.
Depois de trocarem saudações, os brasileiros se dirigiram ao Savoy Hotel. O belo edifício, de estilo eclético, impressionou os visitantes. Buenos Aires era considerada a Paris da América do Sul e o requinte do hotel refletia aqueles áureos tempos da capital argentina.
Do hotel, os jogadores seguiram para a residência do General Julio Roca. Uma das figuras mais polêmicas da história política da Argentina, o ex-presidente é considerado por muitos como o construtor do moderno estado argentino, ao mesmo tempo que lhe é atribuído o aniquilamento de milhares de indígenas na região da Patagônia.
Muito doente, o político vivia seus últimos dias de vida. Aos 71 anos de idade, Roca recebeu gentilmente a Seleção Brasileira. Ainda na residência do general ficou estabelecido que o jogo entre as duas equipes aconteceria no domingo seguinte, dia 27.
A disputa, inicialmente marcada para o próprio dia 20, precisou ser adiada devido ao atraso do vapor que trouxe os brasileiros. O navio deveria ter chegado um dia antes, mas sofreu atraso devido ao mau tempo. Jogar poucas horas depois do desembarque seria entregar a taça sem luta. Diversos jogadores ainda estavam enjoados devido à turbulenta e cansativa viagem.
Porém, para não frustrar os torcedores, brasileiros e argentinos se enfrentaram naquele domingo em uma partida amistosa no estádio do Palermo. O relógio marcava 15 horas e 20 minutos quando os times entraram em campo. O grande público encheu as tribunas e aplaudiu os jogadores.
A equipe brasileira jogou apenas para se apresentar aos expectadores. Exausta, sofreu uma derrota por 3 a 0. Apesar do resultado, a apresentação e o comportamento dos brasileiros foram elogiados pelos jornais argentinos, que reconheceram a qualidade técnica e o espírito de luta dos vizinhos sul-americanos. Ainda assim, a vitória argentina no jogo oficial do próximo domingo era dada como certa pelos jornalistas.
A Seleção Brasileira fez ainda mais um jogo-treino durante a semana. Na quarta-feira, dia 23, enfrentou o Columbia Foot-ball Club, um time composto por universitários, e venceu facilmente por 3 a 1. Se na primeira partida, contra a Seleção Argentina, Adolpho Millon foi um dos destaques, nesse jogo-treino coube a outro santista, Arnaldo Silveira, ser elogiado pela imprensa local.
O confronto
Enfim, no histórico 27 de setembro de 1914, a Seleção Brasileira entrava no campo do Gymnasia y Esgrima para disputar sua primeira partida oficial, válida pela Copa Roca. Os argentinos eram os favoritos, já que o país tinha uma seleção nacional desde o início do século.
Porém, logo que a partida começou, o favoritismo dos anfitriões caiu por terra. Aos 13 minutos de jogo Rubens Salles deu um chute indefensável de fora da área. A bola subiu, pegou efeito e surpreendeu o goleiro Rithner. O Brasil abria o placar.
A Argentina chegou a empatar. Aos 21 minutos do segundo tempo o atacante Roberto Leonardi recebeu um lançamento de Izaguirre, dominou no peito e marcou. O árbitro Alberto Borghert validou o gol, mas antes que os brasileiros dessem a saída, o jogador argentino disse que o gol não poderia ser validado, pois ele tinha dominado a bola com a mão. O árbitro cumprimentou o jogador pela atitude e ordenou a cobrança do tiro de meta.
Em que pese o esforço da Argentina para alcançar o empate, o Brasil conseguiu segurar o resultado até o final. Os 17 200 torcedores que esperavam uma vitória da sua seleção, presenciaram a primeira vitória da Seleção Brasileira e o começo da maior rivalidade das Américas.
Nesse encontro épico a Seleção Brasileira jogou com Marcos de Mendonça, Píndaro e Nery; Lagreca, Rubens Salles e Pernambuco; Adolpho Millon, Oswaldo Gomes, Friedenreich, Barhô e Arnaldo Silveira.
A Argentina levou a campo Juan José Rithner, Diomedes Bernasconi e Carlos Galup Lanús; Ricardo Naón, Ernesto Sande e Santiago Sayanes; Juan José Lamas, Roberto Leonardi, Antonio Piaggio, Carlos Izaguirre e Francisco Crespo.
Fair Play
Após a partida, o embaixador brasileiro em Buenos Aires, Sérgio Dantas, fez o seguinte comentário sobre Roberto Leonardi: “O gesto foi tão sublime que o gol deveria valer por dois”. Nos dias de hoje, devido à enorme rivalidade dos dois países no futebol, seria improvável presenciar tal ato de honestidade.
No retorno dos campeões, o cais do Porto, no Rio de Janeiro, tornou-se pequeno para a grande quantidade de torcedores que foram recepcionar os craques da Seleção, entre eles os heróis santistas Adolpho Millon e Arnaldo Silveira.
Esses dois rapazes formaram a dupla de pontas do Santos e da Seleção Brasileira nos seus primórdios. O ponta-direita Adolpho Millon Júnior tinha 16 anos quando fundou o Santos, e Arnaldo Silveira, outro fundador, apenas um ano mais velho, era o ponta-esquerda.
Adolpho era driblador e irreverente, como muitos outros que depois fariam parte da história santista. Arnaldo, mais sério e líder nato, era o capitão do Santos. Foi dele o primeiro gol oficial na história santista, na vitória por 3 a 2 sobre o Santos Athletic Club, no campo da avenida Ana Costa.
Além da conquista da Copa Roca, o primeiro da Seleção Brasileira, a dupla atuou na Copa América de 1919, à época denominada Campeonato Sul-americano, título mais importante do futebol brasileiro até então, conquistado no recém construído estádio de Laranjeiras.
A Copa Roca
Criada em 1913 pelo ex-presidente da Argentina, General Julio Argentino Roca, a competição consistia em duelos entre as seleções nacionais de Brasil e Argentina.