Ímpar é pouco: figura icônica em nosso país desde sua estreia, nos anos 60, Rita Lee marcou presença na história da música brasileira. E, prova de que a crise pode se tornar um trampolim para muitas realizações, foi a partir de sua expulsão de Os Mutantes, acusada de “falta de calibre como instrumentista”, que engrenou uma carreira artística original e de sucesso.
Com seu parceiro de vida e de trabalho, Roberto de Carvalho, criou hits deliciosos que embalaram gerações, com muita repercussão, inclusive mercadológica: antes da era digital, foi a quarta artista que mais vendeu discos no Brasil.
Talentosa, bonita, irreverente, atrevida, criativa, performática, sensível, sensual, polêmica, espirituosa, espiritualizada, ativista singular do feminismo, Rita Lee foi também muito inteligente. “Papel de boba, só se for em Hollywood”, avisou, na letra de Dias Melhores Virão, também filme de Cacá Diegues, de que participou inclusive como atriz.
Como poucos, encarnou o arquétipo espontâneo do Louco do tarô, ou do “bobo” da corte, aquele que, produzindo comédia e entretenimento, lança ao público verdades incômodas – mas também perfume, no caso de Rita.
Com uma única frase de efeito emitida em canções ou entrevistas, repleta de lucidez, bom humor, pura provocação ou tudo isso junto, questionava dogmas, desmontava crenças e semeava dúvidas, só para sacudir a pretensa normalidade e instigar a reflexão, o que é uma das funções primordiais do artista.
Como quase todo mundo, especialmente os que se encontram em evidência, teve lá seus episódios públicos de bola fora, que escolho não citar. “Mas era gente fina”, como se definiu para o próprio epitáfio.
Nos últimos anos, já avó, buscou corrigir os excessos cometidos contra a saúde ao longo da vida, mantendo considerações profundas sobre a existência, que muita “gente sã” jamais chega a cogitar. “Gosto de mim, mas não é muito confortável ser eu”, disse. De fato, nunca foi morna, viveu, arriscou e pagou o preço das boas e das más experiências que decidiu trilhar.
Mutante também na aparência, soube trocar com naturalidade a fiel cabeleira ruiva pela grisalha, para depois aderir com mais força aos chapéus e turbantes, que protegeram sua brilhante cabeça durante o tratamento contra a doença final.
Nós que a admirávamos estamos tristes sim, agora privados de sua personalidade única. Afinal, um ser humano com a capacidade expressiva de Rita Lee Jones de Carvalho não nasce todos os dias.
Onides Bonaccorsi Queiroz é jornalista, escritora e contadora de histórias