Introdução
Ab initio, devemos salientar que com o advento dos princípios neoliberais e o processo de globalização da economia mundial, principalmente com relação ao desenvolvimento das atividades econômicas (comerciais e industriais), desenrolou-se uma relação de desigualdade no tratamento do fornecedor com o consumidor.
Na busca de um mecanismo que trouxesse proteção ao consumidor, a partir da década de 50, organizações europeias buscaram implementar tais ferramentas.
A introdução do microssistema jurídico do Código de Defesa do Consumidor no ordenamento jurídico brasileiro atendeu as expectativas dos consumidores nacionais buscando da paridade no tratamento entre os dois pólos da relação de consumo, dirimindo as práticas abusivas tão comuns antes do referido diploma consumerista.
Não podemos deixar de salientar que a Constituição Federal estabeleceu a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, que consiste em assegurar a todos os brasileiros uma existência digna, conforme os ditames previstos no art. 170, IV, da Constituição Federal. Portanto o consumidor trata-se da figura titular de direitos e garantias constitucionais fundamentais.
Com a finalidade de concretizar os ditames previstos na Constituição Federal, fundados na dignidade da pessoa humana bem como da cidadania, previstos no art.1º, II e III da Carta Magna, não podemos prescindir dos serviços públicos essenciais já que por eles sendo assegurada pelo Código de Defesa do Consumidor a continuidade de tais serviços, isto é, a natureza ininterrupta destas atividades.
Diante de tais considerações, faz-se necessário entender que a vida moderna, para que se tenha o mínimo de dignidade há necessidade de mantermos serviços essenciais de infra-estrutura. Podemos exemplificar quando um país declara guerra a outro, os primeiros alvos são os serviços essenciais, pelo simples motivo de serem aqueles que mantêm o mínimo de estrutura de um país, não só estrutura física mas também estrutura psicológica na nação.
Definição de serviço público
Com relação ao Código de Defesa do Consumidor não há qualquer definição para serviço público, portanto a norma que protege o consumidor de abusos decorrentes de serviços essenciais não existem.
Em que pese o silêncio da norma consumerista, A Lei 7.783 de 28 de junho de 1989, vulgarmente conhecida como “Lei de Greve”, em seu art. 11, parágrafo único, aduz que “são necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”. Assim, por analogia, entendemos que serviços essenciais são precisamente aquelas atividades imprescindíveis à satisfação das necessidades inadiáveis da comunidade.
Nesse diapasão, Hely Lopes Meirelles afasta os atos do Poder Legislativo ou Judiciário deste rol de atividades ao assentar que serviço público é “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado” (MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 33ª ed. 2007, p. 330). Apesar do esforço do ilustre mestre, o conceito por ele apontado trata-se, ainda, de muito extenso e abrangente.
Com esse fundamento, ulteriormente, partidários de uma definição mais estrita entenderam que o conceito de serviço público não poderia encerrar todas as atividades da Administração, isto é, dentre as atividades exercidas pelo Poder Executivo, ter-se-ia atividades que seriam efetivamente serviços públicos.
Partindo dessa definição fixaram-se três critérios de definição de serviços essenciais, quais sejam:
- Critério Subjetivo: que estabelecia que serviço público referia-se aquele prestado pelo Estado. Tal critério orientava-se pela pessoa jurídica prestadora da atividade.
- Critério Material: cujo conceito considerava a atividade prestada propriamente dita. Assim, as atividades que tem por fulcro o atendimento das necessidades de caráter coletivo são consideradas serviços públicos.
- Critério Formal: cujo fundamento é o regime jurídico. Então, serviço público consiste naquele realizado sob o regime de Direito Público.
Mesmo com a definição doutrinária ainda exigia-se uma definição legal para os serviços essenciais, mas
em virtude da ausência de legislação que regule e determine quais os serviços públicos essenciais, na Lei nº. 7.783/89, no art. 10 e incisos, são aventados alguns serviços essenciais, in verbis:
Artigo 10 – São considerados serviços ou atividades essenciais:
I – tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
II – assistência médica e hospitalar;
III – distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV – funerários;
V – transporte coletivo;
VI – captação e tratamento de esgoto e lixo;
VII – telecomunicações;
VIII – guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares;
IX – processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X – controle de tráfego aéreo;
XI – compensação bancária.
Vale lembrar que esse artigo de lei dispõe de um rol exemplificativo, apontando de forma aberta os serviços essenciais. Sob esse prisma, possibilita-se ao legislador descrever outras modalidades de serviços públicos essenciais.
Questão importante a ser analisada é o fato de que os serviços essenciais caracterizam-se pelo imediatismo da sua prestação, sobretudo pela premência em que deve ser fornecido. Razão pela qual se torna mais ardente a inafastabilidade da sua prestação.
Classificação dos serviços públicos
Quanto a classificação, genericamente eles são classificados como:
- Serviços próprios do Estado – são aqueles que se relacionam intimamente com as atribuições do Poder Público (Ex.: segurança, polícia, higiene e saúde públicas etc.) e para a execução dos quais a Administração usa da sua supremacia sobre os administrados. Não podem ser delegados a particulares. Tais serviços, por sua essencialidade, geralmente são gratuitos ou de baixa remuneração.
- Serviços impróprios do Estado – são os que não afetam substancialmente as necessidades da comunidade, mas satisfazem interesses comuns de seus membros, e, por isso, a Administração os presta remuneradamente, por seus órgãos ou entidades descentralizadas (Ex.: autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações governamentais), ou delega sua prestação.
Já para o mestre Hely Lopes Meirelles subdivide em:
- Serviço público propriamente dito: são os serviços públicos entendidos essenciais, indispensáveis à própria sobrevivência do homem, sendo que, por isto mesmo, não admitem delegação ou outorga. A doutrina também os denomina de serviços pró-comunidade (ex.: polícia, saúde);
- Serviço de utilidade pública: são úteis, mas não apresentam a essencialidade dos denominados “essenciais”. Podem ser prestados diretamente pelo Estado ou por terceiros. São também chamados deserviços pró-cidadão (ex.: transporte, telefonia, energia elétrica);
- Serviço industrial: produz renda para aquele que o presta, nos termos do que estabelecido no artigo 173 da Constituição Federal de 1988. Referida remuneração decorre de tarifa ou preço público. O Estado presta o serviço industrial de forma subsidiária e estratégica;
- Serviço de fruição geral (uti universi): é o serviço remunerado por tributos, não possuindo, portanto, usuários definidos. A doutrina entende que esta espécie de serviço não é passível de corte, suspensão, má-prestação ou interrupção;
- Serviço individual (uti singuli): diferentemente do serviço de fruição geral, o serviço individual, na dicção de parte da doutrina, pode ser suspenso ou cortado se o usuário, por exemplo, não realizar o pagamento da tarifa correspondente, na medida em que seus usuários são individualizados (conhecidos e predeterminados).
Todos levando em consideração a essencialidade, a adequação, a finalidade e os destinatários dos serviços.
Como já foi analisado alhures, os serviços reconhecidos como essenciais não possuem uma enumeração exaustiva e, conseqüentemente, a classificação dessa espécie de serviços é oscilante, admitindo-se apenas vaga classificação e exemplificação dos serviços assim reconhecidos, sob o fulcro da essencialidade que lhe são inerentes para o bem-estar do homem.
Da ilegitimidade da interrupção dos serviços públicos
Primariamente devemos frisar que o inadimplemento de obrigação é e sempre foi, com efeito, reprovável pelo Direito. Não buscamos fundamento jurídico para o não pagamento das obrigações contratuais contraídas, mas sim a importância da continuidade da prestação de determinados serviços para o bem social.
No sentido de garantir o cumprimento das obrigações contraídas, parte da doutrina se posicionou no sentido de ser legítima a suspensão do serviço público essencial em virtude da falta de pagamento, desde que haja prévia notificação ao consumidor. Assim, a empresa que responde pelo serviço interromperia seu fornecimento após um prazo médio de trinta dias. Portanto necessária a notificação prévia para a interrupção do serviço. O fundamento para o “corte” advém de que não a gratuidade de prestação do serviço essencial não é presumível, portanto não havendo obrigatoriedade de fornecimento gratuito, por parte do Poder Público, àquele que não efetua os pagamento devidos, de forma continuada.
De outro lado, há uma corrente que defende que o tolhimento de serviço público essencial em virtude de inadimplemento deverá ser executado mediante ordem judicial e por intermédio de uma ação de cobrança em juízo. De modo geral, os usuários destes serviços sofrerão cortes no fornecimento quando se tratar de autorização judicial concedida à concessionária responsável pela prestação do serviço. Denota-se que a simples inocorrência de pagamento não gera legalidade para suspender a prestação do serviço essencial, senão quando se efetuar através de meios judiciais.
Questões Práticas
Água
É nítido que a água é um bem exaurível e que a manutenção da vida humana está condicionada a sua preservação. Faz-se mister, portanto, a classificação deste bem dentre os serviços públicos essenciais, regulamentando-se o seu uso correto para a manutenção do bem-estar social.
Juridicamente a água é regulada pelo Código de Águas, Decreto nº. 24.643, de 1934. A competência privativa para legislar sobre água é da União conforme artigo 22, IV daConstituição Federal. É de competência privativa da União legislar sobre a água, conforme aduz o art. 22, IV da Constituição Federal de 1988. Outrossim, também está presente na enumeração do art. 10, I da Lei 7.783/89 e portarias ministeriais.
Nesse ínterim, importante transcrever acórdão do Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ACÓRDÃO QUE, À LUZ DAS PROVAS DOS AUTOS, CONCLUIU PELA ILEGALIDADE DA INTERRUPÇÃO DO SERVIÇO DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA, EM RAZÃO DE DÉBITO PRETÉRITO. ILEGALIDADE. SÚMULA 7/STJ. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.(…) III. Ademais, o acórdão recorrido encontra-se em consonância com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que é ilegal o corte no fornecimento dos serviços públicos essenciais, em razão de débito pretérito. A propósito: STJ, AgRg no AREsp 412.849/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 10/12/2013; STJ, AgRg no AREsp 392.024/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, DJe de 10/03/2014.
Energia Elétrica
A exploração direta ou mediante autorização, concessão ou permissão dos serviços e instalações de energia elétrica é de competência da União, consoante o art. 21, XII, alínea bda Constituição Federal e está presente no rol do art. 10 da Lei 7.783/89 e também em portarias ministeriais.
Há diversos doutrinadores que arguem em favor da legitimidade do corte de energia elétrica sob o fundamento de que a continuidade deste serviço prevista na legislação consumerista não é absoluta. Nesse sentido posiciona-se o STJ, conforme acórdão in verbis:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE CORTE POR DÉBITOS PRETÉRITOS. SUSPENSÃO ILÍCITA DO FORNECIMENTO. DANO IN RE IPSA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
(…) 2. Esta Corte Superior pacificou o entendimento de que não é lícito à concessionária interromper o fornecimento do serviço em razão de débito pretérito; o corte de água ou energia pressupõe o inadimplemento de dívida atual, relativa ao mês do consumo, sendo inviável a suspensão do abastecimento em razão de débitos antigos. (AgRg no AREsp 484166 / RS – AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – 2014/0047163-5).
Telefonia
É de competência privativa da União a atividade legislativa e a exploração direta ou mediante autorização, concessão ou permissão, dos serviços de telecomunicações, conforme dispõe o art. 21, XI e 22, IV da Constituição Federal. Há previsão legal no art. 10 da Lei 7.783/89 e portarias ministeriais. A Lei 9.472/97 que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, criou a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL como órgão regulador das telecomunicações.
Ademais, por se inserir na categoria de serviços considerados essenciais, deve ser prestada de forma contínua e ininterrupta. Faz-se necessário transcrever jurisprudência pertinente à interrupção da prestação de serviço de telefonia fixa cujo teor veda a interrupção do serviço sob a alegação de inadimplemento:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TELEFONIA. SERVIÇOS ESSENCIAIS. SUSPENSÃO. DELEGACIA DE POLÍCIA, UNIDADE DE CUSTÓDIA E SERVIÇO DE SAÚDE. DÉBITOS PRETÉRITOS. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STJ.(…) 2. Neste ponto, cumpre destacar que a orientação jurisprudencial deste Sodalício admite o corte no fornecimento do serviço de telefonia em relação a entes públicos, desde que cumpridos os requisitos legais pela concessionária de telefonia. Além disso, o corte no fornecimento não pode alcançar os serviços públicos essenciais para a coletividade tendo em vista a existência de outros meios à disposição da parte credora para a cobrança dos débitos. Precedentes do STJ: REsp 742.640/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon,, DJ 26/09/2007; REsp 302.620/SP, 2ª Turma, Relator p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha, DJ de 16/02/2004. (AgRg no AgRg no AREsp 152296 / AP AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL 2012/0042200-9)
Conclusão
O serviço público essencial tem a finalidade primária de servir o público e, apenas em segundo plano, o objetivo de produzir rendimentos financeiros para o fornecedor. Assim, depreende-se que o corte por inadimplemento é ilegal. Assim, devem ser reprimidos todos os abusos praticados contra os cidadãos que muitas vezes vêem tolhidos os seus direitos. O exercício dos direitos sociais e individuais, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça devem ser assegurados como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social como preconiza o preâmbulo da Constituição.
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