Para garantir o que a Constituição Federal consagra como fundamento do Estado Democrático de Direito, no que diz respeito à dignidade da pessoa (art. 1º, III), o juiz da 2ª Vara de Execuções Fiscais e Registros Públicos, Amauri Lemes, concedeu a Hebert Guimarães Pereira o direito de mudar o seu nome e sexo no registro de nascimento, autorizando à requerente a constar no documento a identidade sexual feminina.
Segundo a decisão, o sexo definido da parte foi registrado com base na observação dos órgãos genitais externos, no momento do nascimento, porém, ao longo de sua vida, essa identidade não estava em conformidade com seu estado psicológico, como comprovado em relatório realizado pela equipe do serviço de apoio às varas de família, configurando assim manifestação de transexualismo.
“Verifica-se com meridiana clareza que ela apresenta-se socialmente como mulher, há mais de 18 (dezoito) anos”, destacou o magistrado, ressaltando ainda que a cirurgia de transgenitalização não é requisito essencial para a respectiva retificação, tendo em vista que o sexo que dirige o comportamento social externo do indivíduo é o sexo psicológico, sob o ponto de vista psíquico da autora.
Evocando novamente a constituição, que apregoa uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), que promova o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV), Amauri Lemes considerou constrangedor e vexatório para a requerente manter os documentos pessoais com uma identidade que não coaduna com sua condição.
Evolução
O magistrado faz ainda um apanhado das decisões que vem evoluindo no sentido de garantir esse direito. Primeiro o ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que, em 2007, concordou com a alteração, mas definiu na ocasião que deveria ficar averbado ao registro civil do transexual que a modificação do seu nome e do seu sexo decorreu de decisão judicial.
Em 2009, em decisão inédita, a ministra Nancy Andrighi garantiu ao transexual a troca do nome e do gênero em registro, sem que constasse a anotação no documento, apenas nos livros cartorários. “A alteração na certidão significaria a continuidade da exposição da pessoa a situações constrangedoras e discriminatórias”, manifestou-se.
Reconhecimento
Diante do pedido e das provas juntadas aos autos, além do conjunto legal já produzido com relação ao tema, o juiz julgou procedente a ação, determinando a retificação do nome para Cínzia Guimarães Pereira, sexo feminino, permanecendo inalterados os demais dados do registro de nascimento.
O magistrado manifestou-se ainda acerca do preconceito: “sexo é uma eventualidade, o que prevalece é a raça humana, qual seja, homem e mulher”, ressalvou.
Para Amauri Lemes, a discriminação ao homem é tão abominável quanto odiar um negro, um judeu, um palestino, um alemão ou um homossexual. “E um dos direitos fundamentais da pessoa humana; é a sua identidade pessoal, ou seja, é a maneira de ser, como a pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural e ideológica, e o direito que tem todo o sujeito de ser ele mesmo”, concluiu.
Repercussão
O resultado da decisão teve um sabor de vitória para Cínzia. Ela conta que sempre passou por situações muito constrangedoras quando tinha de mostrar os documentos pessoais, sobretudo com relação a trabalho. “Nas entrevistas era aprovada, mas quando levava os documentos, a vaga deixava de existir para mim”, contou. “Para ter uma autonomia financeira tive de construir meu próprio negócio, hoje sou cabeleireira, uma área onde não enfrento tantos preconceitos”, acrescentou.
Lembrou, ainda, que a discriminação contra o transexual ocorre em todas as esferas sociais. “Por isso muitos acabam caindo no mundo das drogas, da prostituição, da violência. Há muitos casos até de suicídio”, comentou. “Graças à minha determinação e força psicológica consegui enfrentar essas adversidades e não sucumbi à marginalização”, destacou a aguerrida profissional, sempre na luta contra a opressão social. “Gostaria que outras pessoas na mesma situação se espelhassem nessa busca e vissem que é possível ter o reconhecimento judicial”.
Cínzia, que teve de parar de estudar por conta dessas situações vexatórias, espera agora retomar o antigo sonho. “Quero recuperar o tempo perdido”, finalizou. Fonte:TJ/RO