A epidemia de Zika vírus não tem solução. A epidemia de microcefalia tem uma só. É aborto. A mulher que quiser certeza de que não terá um filho com microcefalia precisa interromper a gravidez. Classe social não pode ser empecilho. Não é mais questão polêmica. É questão de saúde pública.
Os argumentos contra a legalização do aborto não se sustentam. Usar o aborto para evitar ter um filho microcéfalo não é “eugenia”. Eugenia é quando o Estado privilegia determinadas características genéticas, em detrimento de outras. É a Alemanha nazista matando judeus e ciganos, esterilizando cegos, homossexuais, esquizofrênicos. No Brasil estamos falando do exato contrário. É hora do Estado parar de se meter na vida pessoal das mães, dos casais. Políticas eugênicas são sempre um cerceamento da liberdade. Aborto legal no Brasil, ao contrário, será mais liberdade.
O argumento de que “toda vida é sagrada” não tem nexo. “Sagrado” é um termo sem significado jurídico. Pessoas diferentes entendem que coisas diferentes são “sagradas”. O pecado de um é virtude para outro. Fé pode ser um impeditivo para a mãe; se ela preferir seguir com a gravidez, porque é o que sua religião prega, tem todo direito de fazer isso. O que importa em uma sociedade diversa, democrática, não-teocrática, é a lei.
A lei brasileira já rejeitou o argumento de que interromper gravidez é “tirar uma vida”. Surpresa: o aborto já é permitido no Brasil. Hoje, só em dois casos. Quando a gravidez coloca em risco a vida da mulher. E quando a gravidez é resultado de um estupro. Mesmo que os fetos sejam perfeitamente viáveis, veja bem. É direito legal da mulher interromper a gravidez. A lei aceita, por enquanto só nesses dois casos, e a mulher não está cometendo nenhum crime.
Mais que isso: nesses casos, o Estado tem o dever de fornecer o auxílio necessário para amparar as mulheres que optarem por abortar. Na cidade de São Paulo, por exemplo, são oferecidos os seguintes serviços para as mulheres:
– Atendimento médico
– Contracepção de emergência para casos de estupro, em até 72 horas do ocorrido
– Coleta de material para identificação do agressor por meio de exame de DNA
– Acompanhamento clínico, psicológico e social durante e depois da interrupção da gravidez (ou, se for o caso, durante o pré-natal)
– Exames laboratoriais para diagnósticos de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs).
Pergunta: se uma brasileira pode abortar com o apoio do Estado, caso corra risco de vida, ou caso tenha sido estuprada, porque ela não pode abortar em outras situações? O Estado tem o direito de obrigar uma mãe a ter um filho microcéfalo? A resposta é não. É uma imposição imoral – que deve também ser ilegal. Quem quiser se arriscar a ter um filho microcéfalo, que faça isso. Quem não quiser correr riscos, que tenha todo apoio para interromper a gravidez.
O aborto já deveria ter sido legalizado no Brasil há muito tempo, como já é em todos os países ricos e educados. Mas no Brasil só os ricos e educados fazem aborto em caso de suspeita de microcefalia, porque custa os olhos da cara. Reportagens têm relatado casos em que mulheres da classe alta pagam até R$ 15.000,00 para interromper a gravidez, como prevenção. A epidemia de Zika escancara a necessidade desse direito ser estendido a mulheres de todas as classes sociais.
Importante dizer que essa epidemia não tem prazo para acabar. A conversa sobre vacina é propaganda vazia. Os maiores especialistas no tema afirmam que estamos a dez, talvez quinze anos de uma vacina contra Zika. Não se conhece direito a doença. Até hoje, a Dengue já foi objeto de 14.840 estudos acadêmicos. O Zika só teve até hoje 242 estudos. Os dados são do National Center for Biotechnology Information. Os cientistas afirmam que há um “vácuo” no conhecimento sobre a doença. Esta reportagem da Bloomberg explica bem a enrascada.
No pouco tempo desde que a Zika explodiu no Brasil, já passamos de 4.200 casos de bebês microcéfalos. Em dez anos serão quantos? Quarenta, cinquenta mil? Milhões? E no mundo?
Mesmo com o aborto legalizado, muitas mães decidirão ter seus filhos mesmo assim. Que tenham o apoio financeiro necessário do poder público. Que essas famílias saibam cuidar dessas crianças e conviver com suas decisões. Terão direito ao BPC, o Benefício de Proteção Continuada, que garante um salário mínimo mensal a pessoas com deficiência que não tenham meios para se sustentar nem podem ser sustentadas pela família, independente da idade. Um salário mínimo não dá para nada, para quem tem um filho nessa situação, muitos sem controlar movimento, sem ver, com espasmos, com problemas cognitivos terríveis.
Se essas famílias processarem o Estado por crime de responsabilidade podem perfeitamente ganhar indenizações bem grandes. É o certo. O Aedes Aegypti se propaga por responsabilidade do poder público. O Zika é obra da natureza mas essa epidemia não é natural. É obra do poder público brasileiro. É negligência.
É o Estado que nega saneamento e serviços de saúde decentes à maioria dos brasileiros. Foi o governo de Fernando Henrique Cardoso que abriu mão de combater o Aedes Aegypti em 1998, quando José Serra transferiu essa responsabilidade para os municípios (mais detalhes sobre essa irresponsabilidade fatal aqui).
Lula e Dilma não consertaram a besteira do governo tucano. Teve dinheiro para Copa, Olimpíada, empresários amigos, encher os cofres dos bancos com juros altíssimos. Dinheiro para investir em saneamento, a coisa mais básica para a saúde de um povo, faltou.
E agora falta dinheiro para tudo, porque a crise econômica está pegando forte. Bem, vai ter que aparecer de algum lugar. Há que se federalizar o combate ao mosquito e distribuir repelente para o país todo; há que fazer esgoto; há que pesquisar vacina; há que ajudar financeiramente essas famílias.
Mas antes de mais nada é preciso estender às mulheres pobres o direito ao aborto, que as mulheres mais ricas já tem. As fotos não mentem: a maioria das mulheres que enfrenta esse pesadelo é de jovens, negras, pobres. O Estado tem grande responsabilidade por essa crise. O Estado não tem direito de obrigar essas brasileiras a terem filhos microcéfalos. Essa decisão é delas. Legalizar o aborto é fazer justiça.
Fonte: R7