De cada três quilos de alimentos produzidos no mundo, pelo menos um é jogado fora. Vai para o lixo todos os anos 1,3 bilhão de toneladas de comida que poderia ajudar a alimentar 795 milhões de pessoas que passam fome.
Números da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) também mostram que, além do drama social, o desperdício impõe à sociedade moderna um alto custo ambiental e econômico.
A produção da comida descartada consome 250 quilômetros cúbicos de água e ocupa 1,4 bilhão de hectares, quase um terço de toda a terra cultivada do planeta.
O desperdício joga anualmente na atmosfera 3,3 bilhões de toneladas de gases de efeito estufa, terceiro maior volume de emissões que provocam o aquecimento global, atrás apenas das emissões dos Estados Unidos e da China.
Os custos de tanto desperdício superam os US$ 750 bilhões a cada ano, estima a FAO. Inutilizar tamanho volume de investimentos e de recursos naturais é um contrassenso frente ao desafio mundial de alimentar uma população que deverá passar de 8 bilhões de habitantes nos próximos 15 anos.
— Não é justo nem razoável que, enquanto tem gente passando fome no Brasil e em todo o mundo, se tenha desperdício de comida. Acho um crime — diz a senadora Ana Amélia (PP-RS), presidente da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA).
Múltiplas causas
A magnitude dos números do desperdício indica a complexidade de um problema que começa quando o alimento é colhido no campo e depois processado, armazenado e transportado.
Pelo menos metade do desperdício ocorre nessas etapas da cadeia de produção, mas são perdas classificadas como não intencionais, decorrentes da falta de tecnologia adequada nas propriedades rurais. Não são raros danos em frutas e verduras pelo manuseio incorreto na colheita ou por ficarem muito tempo expostas ao calor ou ao vento.
Também são consideradas involuntárias as perdas por problemas na infraestrutura de transporte, desde estradas esburacadas até a precariedade de veículos utilizados para o escoamento da produção.
Descarte nas cidades
A outra metade do desperdício é mais visível, pois é quando a produção chega às cidades e o descarte acontece nos armazéns atacadistas ou no varejo em supermercados, verdurões e feiras.
Nessas etapas, o lixo é o destino de boa parte dos produtos que não foram vendidos. Estão nesse grupo produtos saudáveis que foram danificados pelo manuseio inadequado dentro dos locais de venda.
É o caso também dos produtos fora dos padrões de mercado, como frutas muito pequenas, que têm alguma mancha ou mesmo um pequeno amassado. Sem valor de compra, mas em perfeitas condições nutricionais, poderiam ser doadas, mas acabam no lixo.
— O desperdício pode chegar a 40% [da produção]. No Brasil, são centenas de toneladas desperdiçadas só na parte final, no varejo de alimentos — lamenta o senador Jorge Viana (PT-AC), autor de projeto de lei para incentivar a doação de produtos em condição de consumo.
Aumentar as doações é essencial para programas como bancos de alimentos criados para distribuição a populações carentes. Essas iniciativas hoje contam com uma pequena fração do volume não comercializado por atacadistas e varejistas. A maior parte acaba descartada.
Também autor de projeto que trata do tema, o senador Ataídes Oliveira (PSDB-TO) alerta para a urgência da aprovação de medidas que reduzam o desperdício.
— Temos no Brasil 26 milhões de toneladas de alimentos que vão a cada ano para o lixo. E sabemos que temos algo em torno de 7 milhões de pessoas que passam fome no país, das quais 3,4 milhões são crianças, que poderão ter comprometimento de seu aproveitamento escolar [pela subnutrição].
Programa evita perdas e ajuda quem está precisando
Toda quinta-feira, a irmã Maria Angelina Batista vai até o Banco de Alimentos da Central de Abastecimento do Distrito Federal (Ceasa-DF) buscar doações para o preparo das refeições oferecidas a 80 crianças da creche Lar Mãe da Divina Graça, em Samambaia, também no DF.
Parte dos alimentos vem de pequenos agricultores que participam do Programa de Aquisição de Alimentos, do governo federal, mas uma parcela das frutas e verduras entregues à religiosa é doada por comerciantes ao Programa Desperdício Zero (PDZ), da Ceasa-DF.
A creche é uma das 160 entidades cadastradas para receber doações do PDZ, que beneficia 43 mil pessoas. Mensalmente, são doadas em média 30 toneladas de frutas e verduras frescas que não encontraram compradores.
As crianças da creche Lar Mãe da Divina Graça já tomaram suco feito com frutas da empresa atacadista Diniz Laranjas. A quantidade de fruta entregue pela empresa ao PDZ varia muito ao longo do ano, mas já chegou a 20 toneladas ao mês, como explica o gerente da atacadista, Darlison Rodrigues Fernandes.
Ele conta que, antes da criação do programa, toda laranja descartada ia para o lixo, pois não havia segurança quanto à lisura do processo de doação.
— Vinha uma pessoa com um ofício pedindo doação e depois ia vender a laranja. Para evitar esse problema, a gente jogava tudo no lixo. Hoje eu separo, o Banco de Alimentos recolhe e distribui. E eles fazem controle — relata.
A equipe do programa visita cada entidade credenciada para confirmar se está cumprindo a finalidade e prestando o atendimento informado no cadastro, como explica Marcos Sampaio, engenheiro de Alimentos da Ceasa.
— É um controle bem rigoroso, pois é uma forma de incentivar as doações e garantir a quem doa que o alimento será bem destinado — diz.
Potencial
O volume de produtos que passa pelo PDZ, no entanto, poderia ser muito maior, pois são descartados mensalmente na Ceasa 600 toneladas de resíduos, das quais mais da metade são alimentos ainda adequados para consumo.
Uma das limitações para a ampliação do programa é a falta de veículos para recolher os produtos e o número insuficiente de pessoas para a seleção e a distribuição, segundo Marcos Sampaio.
Mas ele também diz ser necessário conscientizar os empresários para a importância da doação de alimentos e defende a isenção de impostos ou a ampliação das deduções do Imposto de Renda para as empresas doadoras.
O gerente comercial da atacadista de frutas Perboni, Cleitom Lima de Menezes, concorda que incentivos fiscais poderiam ajudar a ampliar as doações. Ele observa, no entanto, que precisa haver agilidade para a distribuição de alimentos, pois o setor trabalha com produtos perecíveis.
— O segmento comercializa um produto que não pode esperar 30, 40 ou 60 dias, como ocorre com um eletrodoméstico ou um carro. Aqui temos um prazo curto para vender e o consumidor tem prazo curto também para consumir.
Projetos buscam incentivar doações
Ao constatar que um alimento está em perfeitas condições, mas que o prazo de validade expirou, o consumidor muitas vezes fica em dúvida se pode ou não consumir o produto. Para resolver o problema, o senador Jorge Viana (PT-AC) propõe incluir na legislação o conceito de prazo de validade para consumo seguro.
Seria um prazo superior à validade para venda, que já consta nos rótulos dos produtos, mas que ainda permite que os alimentos sejam consumidos com segurança. A medida seria uma forma de incentivar a doação por fabricantes e comerciantes.
Conforme o projeto (PLS 738/2015), passaria a constar nos rótulos a data-limite para a venda ao consumidor e a validade para o consumo com segurança.
— Nesse intervalo, é possível o consumo seguro do alimento e também se pode fazer a doação sem que se criminalize o doador — explica Viana.
O senador lembra que, de acordo com o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor (CDC), pode ser responsabilizado legalmente quem doar alimentos com prazo de validade vencido. Por isso, são jogados no lixo produtos que ainda poderiam ser consumidos.
Ao estabelecer a validade para consumo seguro, Viana quer acabar com esse impedimento legal à doação de produtos ainda saudáveis.
Ele também propõe a possibilidade de doação de produtos que, apesar de estarem no prazo de validade, perderam a condição de comercialização.
Estão nesse caso produtos cujas embalagens sofreram pequenos danos e são rejeitados pelos consumidores. O senador ressalta que a doação desses alimentos só deverá ocorrer se comprovada a qualidade deles.
O projeto recebeu voto favorável da relatora na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), senadora Ana Amélia (PP-RS), e será discutido em audiência pública, antes de ser votado.
Obrigatória
Já o PLS 672/2015, do senador Ataídes Oliveira (PSDB-TO), obriga supermercados, sacolões, mercados, feiras e restaurantes com mais de 200 metros quadrados de área construída a firmar contratos de doação com entidades que distribuem alimentos à população carente.
Segundo a proposta, os doadores estarão isentos de responsabilidade civil e penal por dano ao beneficiário, desde que não se caracterize dolo e negligência.
— O projeto dá respaldo aos estabelecimentos comerciais que comercializam alimentos, especialmente frutas, com mais de 200 metros de área, para que possam doar alimentos. Isso ainda não é feito por falta de segurança jurídica — afirma.
Ataídes também propõe que alimentos já sem condição para consumo sejam doados à indústria de compostagem, para serem transformados em adubo. Ele observa que hoje milhões de toneladas de alimentos são descartados em lixões, resultando em grave problema ambiental.
— Com o projeto estamos atacando duas grandes causas: o combate à fome e o problema do lixo — diz.
Para quem descumprir as normas, deverá ser aplicada multa de R$ 100 mil.
Política
Também tramita na CRA o PLS 675/2015, de Maria do Carmo Alves (DEM-SE), que cria a Política Nacional de Combate ao Desperdício de Alimentos.
A senadora quer instituir no governo um grupo permanente para o combate ao descarte de alimentos em condições de consumo, que contaria com a participação de entidades da sociedade.
O texto prevê ainda campanhas de conscientização e concessão de incentivos à fabricação de equipamentos que processem alimentos para reduzir perdas.
Incentivos
Em exame na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), o PLS 503/2015, da senadora Sandra Braga (PMDB-AM), prevê que doações de alimentos feitas pelo menos cinco dias antes do vencimento da validade dos produtos poderão ser deduzidas da declaração de Imposto de Renda das pessoas jurídicas.
O engenheiro agrônomo da Ceasa-DF Marcus Araújo acredita que a medida terá a adesão dos comerciantes.
— Eles poderão evitar uma perda de 100% dos produtos [que não conseguiram vender] e também estarão mais conscientes de que estarão ajudando pessoas que necessitam dos alimentos que seriam jogados fora — diz.
No projeto, a senadora propõe que os direitos assegurados no Código de Defesa do Consumidor não se apliquem ao consumo de produtos alimentares doados.
Na Europa, beleza da fruta deixa de ser fundamental
Ganham força entre os países europeus iniciativas para incentivar o consumo de frutas e verduras “feias” — aquelas cuja aparência foge aos padrões de qualidade de mercado e, por falta de comprador, acabam no lixo.
Um exemplo é a Rede Fruta Feia, em Portugal, que recolhe nas propriedades rurais produtos muito pequenos, muito grandes, disformes ou com manchas, que dificilmente seriam aceitos em mercados convencionais. Os produtos são vendidos diretamente a consumidores cadastrados na rede.
A iniciativa integra esforços para reduzir o alto desperdício de alimentos na União Europeia, que chega à metade dos produtos em condições de consumo, como afirmam os consultores do Senado Marcus Peixoto e Henrique Salles Pinto.
Autores do estudo Desperdício de alimentos: questões socioambientais, econômicas e regulatórias, eles relatam ainda outras medidas adotadas na Europa, como a redução do tamanho das embalagens, “para ajudar os consumidores a comprar somente a quantidade adequada às suas necessidades de consumo”.
Também para reduzir o desperdício, foram promovidas mudanças nas leis para obrigar grandes redes de supermercados a doar a instituições assistenciais alimentos não vendidos. A Bélgica foi o primeiro país a adotar a norma, seguido pela França.
Os consultores explicam que, em países desenvolvidos, as perdas se concentram na fase da comercialização, uma vez que os agricultores contam com tecnologias adequadas para produção, processamento e transporte.
Apesar disso, eles ressaltam que muito mais alimentos são desperdiçados nos países industrializados:
“A estimativa é que o desperdício per capita de alimento de consumidores da Europa e América do Norte seja de 95 a 115 kg/ano, enquanto na África Subsaariana e no Sul e Sudeste da Ásia, de apenas 5 a 11 kg/ano”.
Agência Senado