Por Mauricio Puls
O espetáculo deprimente proporcionado pelos deputados federais na votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, no último dia 17 de abril, não chocou apenas a mídia internacional. Os próprios críticos de Dilma se sentiram constrangidos com as palhaçadas da oposição: “pelos fundamentos do cristianismo”, “pela BR-429”, “pelos médicos”, “pela paz de Jerusalém”, “pelo aniversário da minha neta”, etc.
De onde vêm essas pessoas? Esse Parlamento chinfrim constitui mesmo um retrato fiel do País? Longe disso. Um levantamento realizado pelo Datafolha em novembro do ano passado mostrou que 53% dos entrevistados consideravam o Congresso Nacional ruim ou péssimo e 34% julgavam o Legislativo regular. Apenas 8% afirmaram que o desempenho dos deputados e senadores poderia ser classificado como bom ou ótimo. Difícil acreditar que o eleitorado se espelhe em uma instituição tão mal avaliada.
Esse descompasso entre representantes e representados começa no processo de escolha dos deputados. Rigorosamente falando, os parlamentares eleitos não representam a maioria da população: três quintos dos eleitores não tiveram nenhuma responsabilidade pelo show de horrores que se viu na votação do impeachment.
De acordo com os dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), os candidatos que chegaram à Câmara tiveram o apoio de apenas 41% dos eleitores registrados. Aliás, dos 513 titulares da Casa, somente 36 conseguiram se eleger apenas com seus próprios votos: os demais não alcançaram o mínimo necessário, mas acabaram sendo beneficiados pelos sufrágios dados aos seus companheiros de coalizão e aos votos de legenda.
Mesmo assim, é inegável que tais deputados só foram eleitos porque foram votados. Mas isso significa realmente que esses eleitores se identificam com eles?
As pesquisas sinalizam que não. Um ensaio publicado em 2006 pelo cientista político Alberto Carlos Almeida (Amnésia Eleitoral: em Quem Você Votou para Deputado em 2002? E em 1998?) revelou que 71% dos eleitores nem se lembram em quem votaram para deputado federal quatro anos antes (na realidade, a taxa de esquecimento é até maior, pois 3% dos entrevistados citam nomes inexistentes).
O levantamento foi repetido em 2010, com resultados praticamente idênticos: 69% dos eleitores não sabiam dizer o nome do deputado federal no qual tinham votado em 2006. O mais espantoso é que essa amnésia começa cedo: uma pesquisa do Datafolha realizada apenas 12 dias após a eleição de 2010 apontou que 30% dos eleitores do País já não lembravam mais do nome de seu candidato à Câmara.
Basta comparar esses resultados com levantamentos realizados em outros países para se averiguar a magnitude dessa distorção. A nação que mais se aproxima nesse quesito é a Polônia, que também adota o sistema proporcional com lista aberta. Ainda assim, não chega à metade do grau de esquecimento do Brasil.
Esse esquecimento expõe com clareza as enormes deficiências do sistema eleitoral adotado no País. Aqui, o cidadão é induzido a votar em personalidades, e não em partidos. A cada eleição geral, ele precisa escolher de cinco a seis nomes entre centenas (às vezes milhares) de candidatos oferecidos: um presidente, um governador, um ou dois senadores, um deputado federal e um estadual.
As deficiências do sistema começam precisamente aí: enquanto o eleitor do Reino Unido define o Legislativo e o Executivo com apenas um voto, o eleitor brasileiro, que é menos escolarizado do que o britânico, precisa de três ou quatro votos só para configurar a esfera federal. Mas as dificuldades não se resumem nisso.
Nas eleições para o Executivo (sobretudo para presidente e governador), o horário eleitoral gratuito oferece uma quantidade razoável de informações. Os diversos candidatos se apresentam, criticam as propostas de seus adversários, travam debates entre si. No caso das eleições para o Legislativo nada disso acontece.
Não há nenhum debate, nenhuma proposta é discutida. Antes de decidir, o eleitor muitas vezes só dispõe das escassas informações que recebe pela TV: uma imagem e um slogan. É por isso que a amnésia eleitoral no Brasil é tão alta: cada cidadão é obrigado a votar em candidatos que não conhece. Ele tecla alguns números na urna eletrônica, mas, finda a eleição, deixa o caso de lado e não pensa mais no assunto.
Na prática, a grande maioria dos eleitores não acompanha e muito menos fiscaliza a atuação de seus representantes. Em seu artigo Como Controlar o Representante? Considerações sobre as Eleições para a Câmara dos Deputados no Brasil, o cientista político Jairo Nicolau distinguiu quatro tipos de eleitores: o primeiro grupo é composto por um pequeno contingente de eleitores que votam na legenda; o segundo é formado por um grupo, também reduzido, que se recorda e acompanha o desempenho de seu deputado; o terceiro é composto por aqueles que já não se lembram de seu voto, mas avaliam retrospectivamente alguns deputados que se destacaram ao longo da legislatura. O último grupo não faz nenhuma avaliação de desempenho, mas, a cada eleição, apenas trata de escolher um nome dentre os que se apresentam. Neste contingente “concentrar-se-iam os votos dados aos políticos que não são deputados federais e às lideranças civis que se candidatam pela primeira vez”. Como esses eleitores ignoram quase a maioria dos candidatos, tendem a preferir os nomes que lhes parecem um pouco mais familiares.
Assim, quando observamos a lista dos deputados mais votados, sempre nos deparamos com os herdeiros de políticos tradicionais (Bruno Covas, Clarissa Garotinho, Pedro Cunha Lima), personalidades da televisão (Celso Russomanno, Tiririca) e com ex-governadores (Jarbas Vasconcelos, Esperidião Amin, Zeca do PT). Todos já dispunham de uma marca midiática que o horário eleitoral apenas amplificou. Mas esse “recall” não significa que o eleitor tivesse alguma noção sobre o que eles de fato pretendiam fazer.
Porém, se esses candidatos foram escolhidos graças à sua presença na mídia, como explicar a eleição dos demais? Afinal, se quase todos os candidatos dispõem apenas de poucos segundos na TV, por que alguns são eleitos e outros não? Porque os eleitos dispõem de mais recursos para suas campanhas – provenientes de igrejas, fazendeiros, empreiteiros. Em suas campanhas, esses candidatos acabam se concentrando em uma região do Estado. Distinguem-se dos demais porque seu nome “chega” aos eleitores locais por outros caminhos (pichações, cartazes, panfletos), acompanhado de mensagens diferenciadas: eleitores de bairros da periferia recebem cartas e visitadores que prometem creches, escolas e postos de saúde; bairros de classe média alta são alvo de promessas de reforço na segurança pública e redução de impostos.
Contudo, essas propostas enfrentam uma tramitação difícil, porque a agenda do Executivo vai num sentido bem diferente. Ao final, o eleitor é enganado pelo candidato: para se eleger, este promete atender a diversas demandas locais, mas na Câmara ele precisa votar segundo as orientações da bancada – não porque ele seja fiel à ideologia de seu partido, mas para não ser marginalizado por seu líder.
De fato, um dos grandes problemas de um sistema eleitoral que incentiva o voto em indivíduos, e não em partidos, é o incentivo à falta de coesão partidária. O pior é que os partidos terminam por se ajustar a essas distorções, e o fazem de modo a estimular ainda mais essa personalização da política: para eleger bancadas maiores, as legendas acabam destinando mais tempo e dinheiro à campanha dos “puxadores” de votos.
Um exemplo clássico ocorreu na eleição de 2002. O ex-candidato à Presidência Enéas Carneiro foi eleito deputado federal pelo Prona de São Paulo com 1.573.642 votos. Com essa votação, ele elegeu mais cinco candidatos, dos quais o menos votado teve apenas 275 votos. Mas, como todo o sistema não gera vínculos fortes entre os candidatos e as legendas, quatro dos deputados eleitos por Enéas abandonaram o partido um ano depois.
As distorções do sistema eleitoral brasileiro só poderiam ser resolvidas por meio de uma reforma política que permitisse ao eleitor conhecer e acompanhar seu representante.
Uma primeira possibilidade seria substituir o voto nos candidatos (voto uninominal) pelo voto nos partidos (voto em lista), muito usado nos países que adotam a representação proporcional. Com isso, o eleitor só precisaria escolher um partido, o que facilitaria não somente uma maior identificação com uma corrente política, mas também uma maior fiscalização sobre seu desempenho no Congresso.
A segunda possibilidade seria adotar o sistema distrital: o Brasil seria dividido em pequenos distritos, e cada um deles só elegeria um deputado. Nesse caso também se vota em uma pessoa, mas haveria poucos candidatos em cada circunscrição. Isso propiciaria uma maior lembrança e um melhor acompanhamento.
A terceira possibilidade seria adotar um sistema misto, do tipo alemão: metade dos deputados é eleita em distritos pelo critério majoritário (maioria simples) e metade é eleita mediante listas partidárias.
Qualquer uma dessas três opções permitiria ao eleitor conhecer melhor os candidatos ou os partidos nos quais ele votou: na eleição seguinte, cada cidadão teria então condições de recompensá-lo com a reeleição, no caso de um bom desempenho, ou de puni-lo votando no adversário, caso se sentisse decepcionado pela legenda. Qualquer um desses sistemas estabeleceria uma relação mais estreita entre representantes e representados. Com isso, os espetáculos grotescos como o de 17 de abril deixariam de ser encenados.
Fonte: brasileiros
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