Duas forças antagônicas se enfrentam no País no que diz respeito à corrupção. De um lado, a Operação Lava-Jato e seus desdobramentos tentam coibi-la; de outro, o Congresso Nacional pretende legalizar e consagrar a corrupção, transformada em algo aceito pela sociedade. É assim que o jurista Modesto Carvalhosa, de 83 anos, definiu o momento atual brasileiro no painel “Os desafios” do Fórum Estadão — Governança Corporativa, realizado na terça-feira, 19 de julho, em São Paulo. Para Carvalhosa, os acordos de leniência firmados até agora com empreiteiras contrariam a Lei 12.846/2013, também conhecida como Lei Anticorrupção, que prevê a responsabilização objetiva, no âmbito civil e administrativo, de empresas que praticam atos lesivos contra a administração pública nacional ou estrangeira.
“Essas mesmas empresas que constituíram cartel que levou à situação dificílima da Petrobras estão conseguindo, pela ingenuidade às vezes das próprias autoridades de combate à corrupção, os acordos de leniência que contrariam as leis”, criticou Carvalhosa. “A Lei Anticorrupção tem o objetivo claro de punir as empresas corruptas com a aplicação de multas de até 20% do faturamento. E exige que essas empresas cubram os danos morais e materiais que provocaram ao Estado.”
Para Carvalhosa, sob o pretexto do risco de paralisação das empreiteiras e da atividade econômica, o Congresso Nacional discute alterações na legislação que equivalem à legalização do crime. “Parece que as pessoas imaginam que essas empreiteiras vão se tornar boazinhas e se converter à Igreja Pentecostal Anticorrupção”, ironizou. “Não adianta mantê-las com os mesmos controladores que provocaram essa crise.” O jurista defendeu que as companhias flagradas em corrupção tenham seu controle acionário transferido a outros grupos empresariais, como foi feito com os bancos que apresentaram irregularidades no início do governo Fernando Henrique Cardoso.
O fórum foi aberto pelo corregedor-adjunto da área de infraestrutura do Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle, Antônio Carlos Vasconcellos Nóbrega, que lembrou que este momento em que o País vive a operação policial mais contundente da história republicana é também propício a mudanças e avanços pela implementação de mecanismos de transparência nas atividades de suas empresas e do setor público.
Vasconcellos sugeriu que as companhias utilizem o Cadastro Nacional de Empresas Punidas, banco de informações sobre as pessoas jurídicas penalizadas com base na Lei Anticorrupção, em seus processos de licitação: “Se essas empresas não são recomendadas para o setor público, também não deveriam para o setor privado”.
O presidente do Conselho de Administração do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Emilio Carazzai, também defendeu a substituição da direção das empresas envolvidas em esquemas de corrupção e considerou pueril o argumento de que uma punição severa acabaria por quebrá-las: “Isso não precisa acontecer, basta transferir o controle para assegurar a perenidade da empresa”. Carazzai afirmou que as leis de combate à corrupção nivelam o campo para que todos os jogadores sejam tratados de forma leal: “Reputação tem valor econômico, o mercado não existiria sem confiança”.
Segundo Roberson Pozzobon, procurador da República e integrante da força-tarefa da Lava-Jato, a corrupção esteve de tal modo sistematizada nos negócios públicos do País que se tornou a regra, e não a exceção. Para ele, o grau de estruturação em que era praticada leva à pergunta: será que fugia ao conhecimento das diretorias, dos acionistas? “Podemos dizer que não”, respondeu Pozzobon. O procurador acredita que os acordos de colaboração e de leniência, mais a cooperação internacional e entre instituições de controle público e a transparência da ação penal estão fazendo com que se rompa a lei de silêncio do alto escalão dessas organizações criminosas.
“Obviamente não é civismo que motiva os colaboradores a delatar esse esquema, não haveria incentivo sem a diminuição das penas”, observou Pozzobon, a respeito da prática da delação premiada. “Colaboração é meio de obtenção de prova em todos os países em que é aceita, e serve para descobrir uma série de outros fatos e agentes criminosos que não teriam sido sequer tangenciados pela investigação”, afirmou.
“Empresários, agentes políticos e financeiros que encheram seus bolsos com o dinheiro da corrupção começam a ficar preocupados, o que é um excelente sinal”, disse o procurador. “Estão preocupados porque as ações penais têm provas mais robustas e tramitam de forma mais célere, estão preocupados porque o Supremo Tribunal Federal permite hoje que sentenças sejam executadas mediante confirmação de Tribunal de segunda instância, e também se preocupam com a continuidade de seus negócios, porque perdem a confiança de seus clientes, dos bancos, da sociedade.”
Na opinião do procurador, está se delineando um novo paradigma em que as empresas que adotaram um modelo de negócios corrupto precisam se reinventar além do discurso ou serão extintas. “Aquelas que eram simplesmente lenientes e não estavam com a corrupção tão inserida nos negócios passarão a ser compelidas a se autoinvestigarem.”
Fonte:Estadão