Expulsar das arenas olímpicas os torcedores que façam protestos políticos pacíficos é “inconstitucional”. Segundo dois juristas entrevistados , a manifestação de opiniões políticas é uma garantia da Constituição brasileira.
Durante o primeiro final de semana dos Jogos do Rio, alguns torcedores brasileiros foram retirados das arenas por agentes da Força Nacional de Segurança em razão de protestos contra o presidente interino Michel Temer.
No sábado (6), um torcedor que levantou uma placa com a inscrição “Fora Temer” foi retirado da plateia que acompanhava uma prova do tiro com arco no Sambódromo. O homem, que estava com a família, foi retirado do local.
Segundo a Sesge (Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos), subordinada ao Ministério da Justiça e responsável pela Força Nacional, a medida foi solicitada pelo próprio público pois “o referido torcedor estava gritando durante o momento dos disparos, atrapalhando os atletas e demais torcedores”.
Também no sábado, mas em Belo Horizonte, um grupo de 12 torcedores foi retirado do estádio do Mineirão, segundo reportagem do “portal UOL”, durante o intervalo da partida entre as seleções femininas de futebol da França e dos Estados Unidos. O motivo era o mesmo: as críticas ao presidente interino.
“O que aconteceu no Mineirão é uma manifestação pacífica e não poderia ser repreendida”, afirma o jurista Flávio de Leão Bastos Pereira, professor de direito constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie e um dos fundadores do Observatório Constitucional Latino-Americano.
— Me parece inconstitucional retirar uma pessoa portando um cartaz escrito ‘Fora Dilma’ ou ‘Fora Temer’. Este direito é garantido e é livre.
A opinião é compartilhada pelo jurista Dalmo de Abreu Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito da USP.
— É inconstitucional essa restrição, porque ofende o direito constitucional à liberdade de expressão. Acho que houve exagero e um abuso de autoridade na retirada desses torcedores.
COI e Comitê Rio 2016 confirmam veto
Os casos vieram à tona após vídeos publicados na internet mostrarem a ação dos agentes, o que provocou críticas de internautas nas redes sociais e acusações de “censura”.
O COI e o Comitê Rio 2016 convocaram uma coletiva de imprensa para a tarde de domingo (7), na qualconfirmaram que o procedimento será mantido.
O porta-voz do comitê organizador Rio 2016, Mario Andrada, afirmou que a Carta Olímpica proíbe a presença de propaganda política nos locais de competição, assim como qualquer mensagem racial ou religiosa, segundo relato da agência de notícias Reuters.
— Requisitamos aos que fazem manifestações políticas nos locais de competição que não o façam. Se insistirem, serão gentilmente convidados a se retirar. (…) Este é um local para esportes. Precisam se concentrar nisso.
Andrada disse que o comitê organizador informa ao público durante os eventos que nenhum slogan político será tolerado. Mark Adams, diretor de comunicações do COI (Comitê Olímpico Internacional), disse que esse tipo de incidente aparece em toda Olimpíada.
Leis federais X regras olímpicas
Em contato com o R7, a assessoria do Comitê Rio 2016 afirmou que não entende o veto como inconstitucional, já que uma decisão do STF sustentaria a medida.
A referência é ao julgamento da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) 5.136, de junho de 2014, na qual o PSDB questionou um parágrafo da Lei Geral da Copa (Lei 12.663/2012) que trata da liberdade de expressão nos locais de competição.
O ponto de discórdia é o artigo 28, presente tanto na Lei Geral da Copa como na Lei 13.284/2016, o chamado Ato Olímpico, sancionada pela presidente afastada Dilma Rousseff em maio passado. Com redação praticamente idêntica nas duas leis, esse artigo prevê regras aos espectadores nos locais de competição.
Há dois trechos que se destacam: “IV – não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de caráter racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de discriminação; (…) X – não utilizar bandeiras para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável”.
Após as dez restrições, o parágrafo 1º diz: “É ressalvado o direito constitucional ao livre exercício de manifestação e à plena liberdade de expressão em defesa da dignidade da pessoa humana”.
Na ADI de 2014, o PSDB alegava que o parágrafo 1º criaria limitação à liberdade de expressão e que o entendimento deveria ser conforme a Constituição Federal. Por oito votos a dois, o plenário julgou improcedente a ação.
O relator da ação, ministro Gilmar Mendes, observou que “é notória a importância da liberdade de expressão para o regime democrático”, mas que “o constituinte não a concebeu com abrangência absoluta, insuscetível de restrição”. Ele entendeu que as restrições previstas no artigo eram necessárias para prevenir confrontos em potencial entre torcedores de diversas nacionalidades. Ele foi acompanhado por Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski.
Para Flávio de Leão Bastos Pereira, do Observatório Constitucional Latino-Americano, “Gilmar Mendes avaliou que os direitos fundamentais, inclusive o da liberdade de expressão de pensamento, não são absolutos. E de fato não são. Mas uma coisa é um indivíduo ingressar no ambiente esportivo com mensagem de ódio e ofensiva. Outra situação é o individuo ingressar manifestando sua opinião sobre o governo, independentemente do governo”.
Os dois votos vencidos foram do ministro Marco Aurélio e do ex-presidente do STF Joaquim Barbosa. Melo era favorável a interpretar o parágrafo conforme a Constituição, já que as demais manifestações não violentas possuem amparo na ordem constitucional. “Outras manifestações bem-vindas podem ocorrer”, afirmou.
Já Barbosa observou que “o direito à liberdade de expressão preserva o indivíduo e impede que o Estado molde a sua vontade, seus pensamentos”. Em seu entendimento, “se outros direitos forem respeitados, não há razão para restringir a expressão do público nos jogos da Copa ao que os organizadores e o governo entendem como adequado, mas a expressão deve ser pacífica, não impedir que outros assistam às partidas”. Ele observou ainda que “o financiamento público direto e indireto foi condição necessária para a realização da Copa”. Assim, “não faria sentido limitar o plexo de liberdades constitucionais justamente das pessoas que custearam esse evento”.
Para Dallari, as leis dos eventos esportivos tratam de “proibição de manifestação de caráter racista ou xenófobo, ou que induzam à discriminação, [mas] a manifestação política, a favor ou contra, não se enquadra nessas hipóteses legais”.
— O simples fato da exibição de um cartaz não configura uma pregação discriminatória. É um exagero.
Além da decisão do STF, o Comitê Rio 2016 cita a “Política do Espectador Rio 2016” para justificar a retirada de torcedores. O documento possui trecho que proíbe especificamente “qualquer item com tema ou mensagem política, religiosa, racista, discriminatória, difamatória ou xenófoba, que os organizadores entendam que possam ter a intenção de ofender ou incitar a discórdia”.
Para os dois juristas consultados pela reportagem, nenhuma lei ou norma pode se sobrepor à Constituição.
“O COI é uma entidade privada. Ainda que tenha norma administrativa para seus eventos, se essa norma bate de frente com a constituição, ela é nula e deveria ser questionada. Agora, o Judiciário não pode atuar voluntariamente, ele tem que ser provocado para isso, diz Bastos Pereira.
— O que me parece que é que está acontecendo nesse contexto é muito mais uma tradição autoritária dos governantes do Brasil.
Dallari ressalta que quem for expulso de arena por manifestação política “deve registrar uma queixa junto à autoridade policial para que se promova a responsabilidade dos policiais que cometeram um acesso, porque realmente é uma violência ilegal”.