Entidades denunciaram redução da estrutura de fiscalização e das verbas destinadas ao combate do trabalho escravo, em audiência pública na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados nesta terça-feira (21).
Diretor da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Valter Pugliesi foi um dos convidados que ressaltou que, sem a presença firme do Estado, as ilegalidades são incentivadas. “Apenas em 2021 foram resgatados desta condição análoga à escravidão 1.937 trabalhadores e trabalhadoras”, disse.
“Neste ano de 2022, já foi confirmado o resgate de 500 trabalhadoras e trabalhadores em situação análoga à escravidão, somando-se à quase 59 mil trabalhadoras e trabalhadores resgatados. Isso é uma chaga social. É impossível que tenhamos em pleno século 21 estatísticas oficiais que apontam que o trabalho escravo ou análogo à escravidão se tornou quase corriqueiro em alguns rincões deste nosso País”, criticou.
Pugliesi pediu que os parlamentares assegurem mais verbas para todos os órgãos que atuam na fiscalização do trabalho escravo. Segundo ele, o orçamento destinado à fiscalização e aos grupos móveis que fazem o resgate de trabalhadores vem diminuindo nos últimos anos.
Além disso, ele pediu para que não haja retrocesso legislativo na conceituação de trabalho escravo no Código Penal. E citou o Projeto de Lei 3842/12, que retira da definição termos como “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho”. Pela proposta, o trabalho análogo à escravidão seria apenas aquele realizado sob ameaça, coação ou violência, com restrição de locomoção.
Conceito de trabalho escravo
Coordenadora Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, a procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso destacou que o trabalhador não precisa estar acorrentado ou cerceado da sua liberdade de ir e vir para se caracterizar o trabalho escravo, conforme entendimento do próprio Supremo Tribunal Federal.
“Toda vez que se tira a dignidade da pessoa, do trabalhador, da trabalhadora, de forma a tornar essa pessoa não um ser humano, mas uma coisa, um objeto, mera mercadoria de uso e exploração de outra pessoa, a gente está falando de trabalho escravo, trabalho análogo escravo ou escravidão contemporânea”, explicou.
Segundo a procuradora, a escravidão contemporânea tem vários formatos e acontece tanto no meio urbano quanto no rural, embora seja mais comum no rural. Entre as formas que a escravidão assume hoje, ela citou o alojamento em condições degradantes, a falta de acesso à água potável e de equipamentos de proteção, a falta de registro e a desobediência à jornada de trabalho. Além disso, a escravidão contemporânea envolve situações em que o trabalhador fica somente à disposição do empregador, sem ter convivência familiar.
A procuradora enfatizou que o combate ao trabalho escravo deve ocorrer de forma interinstitucional, pelos vários órgãos que têm essa atribuição, como a Polícia Federal, a Auditoria Fiscal do Trabalho, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Trabalho.
Déficit de auditores
Para o presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Assalariados e Assalariadas Rurais (Contar), Gabriel Bezerra Santos, é urgente a edição de um decreto estendendo à polícia rodoviária a competência de fiscalizar.
“O Ministério do Trabalho tem ajudado, tem feito praticamente o impossível para fazer o resgate e a fiscalização, mas o desmonte é total. A gente tem um déficit de quase 4 mil auditores fiscais, então é praticamente impossível fazer o trabalho”, salientou. Conforme ele, no último ano o orçamento para a fiscalização foi complementado por emendas parlamentares.
Além de apontar o desmonte da fiscalização e a falta de concursos públicos para auditores fiscais do trabalho, Lucas Reis da Silva, do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), chamou atenção para outras causas do crescimento do trabalho escravo no Brasil. “A gente tem um contexto muito favorável hoje ao trabalho escravo, com a diminuição dos direitos trabalhista de um lado e aumento da miséria e da pobreza de outro”, resumiu.
Segundo ele, “a reforma trabalhista, aprovada em 2017, empurrou ainda mais o trabalhador para miséria e para a pobreza, intensificou mais a precarização das relações de trabalho e vulnerabilizou ainda mais os trabalhadores”.
Punição
Coordenador-Geral de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Bruno Tempesta afirmou que o ministério encomendou estudo mapeando sentenças judiciais e constatou que apenas cerca de 2% das pessoas físicas que submetem outras à trabalho escravo são punidas e cobrou atuação do Poder Judiciário nesse sentido.
Além disso, informou que ano passado o ministério atualizou a portaria referente ao pacto federativo em que estados e municípios se comprometem a combater o trabalho escravo. “Uma das nossas ideias é descentralizar a política – sair do ministério e chegar nos estados e municípios”, disse.
Ele pediu ajuda do Parlamento para a recomposição dos valores da diária de agentes do Poder Executivo que atuam na fiscalização nos rincões do País. “Hoje a diária de um agente do Poder Executivo está muito aquém de um promotor do Ministério Público do Trabalho”, comparou.
O deputado Vilson da Fetaemg (PSB-MG), que solicitou o debate, destacou que “se fosse cumprida a lei, a fazenda onde se encontrou trabalho escravo teria que ser confiscada para a reforma agrária”. Na visão dele, se a punição fosse de fato implementada, o trabalho escravo no Brasil seria erradicado.
Ele ressaltou ainda que a fiscalização tem sido demandada dos sindicatos de trabalhadores rurais, em vez de órgãos públicos, e que muitos trabalhadores têm medo de fazer a denúncia.
Violação a tratados
Vice-Presidente da a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho, Lydiane Machado e Silva reiterou que os escravagistas devem ser punidos de forma exemplar, inclusive com desapropriação, para não serem incentivados a rescindir.
Ao tolerar o trabalho escravo, o Brasil está, segundo ela, violando tratados internacionais e convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Agenda 2030 da ONU de desenvolvimento sustentável.
“Não adianta a gente bater recordes de colheitas na agricultura, não adianta a gente bater recorde de arrecadação com royalties das commodities se a gente não proteger o nosso povo, se a gente não transformar isso em diminuição das desigualdades sociais”, avaliou ressaltando ainda que muitas empregadas domésticas também são escravizadas.
Diretor da Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais do Rio Grande do Sul, Sérgio Poletto observou que só no estado, entre 2021 e 2022, houve crescimento de 214% no número de trabalhadores resgatados de situação análoga à escravidão.