Em uma audiência na Justiça, a bancária Maria Aparecida de Carvalho, 49, não hesitou. “Falei: Excelência, eu já estou plantando. E não me sinto criminosa por isso”. A planta em questão, mantida em casa, é a Cannabis, cujo cultivo é proibido pela lei brasileira.
É da harle-tsu –variedade da maconha com maior concentração de canabidiol, substância conhecida por efeitos terapêuticos e por não gerar efeito psicoativo– que vem o óleo artesanal extraído por ela para o tratamento da filha Clarian, 13.
A menina sofre com síndrome de Dravet, doença rara que provoca epilepsia, com risco de complicações graves.
No fim de dezembro, a Justiça fez com que a família de Clarian fosse uma das primeiras do país a conseguir um habeas corpus que os autoriza a cultivar maconha para uso próprio e medicinal.
A medida impede autoridades policiais de efetuar prisão em flagrante ou apreender e destruir as plantas, ações previstas na legislação.
“Não há a menor dúvida que o semear, cultivar e dispor da planta por esta família nada tem a ver com o tráfico”, escreveu no despacho o juiz Antônio Patino Zorz, da Corregedoria de Polícia Judiciária de São Paulo.
A decisão ocorreu poucos dias depois de duas outras famílias, também com crianças que sofrem de doenças raras, terem obtido aval semelhante –e aberto caminho para que mais pessoas façam o mesmo.
Segundo o advogado Emílio Figueiredo, da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, essas foram as primeiras autorizações do gênero.
Até então, a maioria das ações judiciais relativas ao uso medicinal da maconha envolvia pedidos para que o Estado fornecesse produtos à base de Cannabis feitos no exterior.
Desde 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária tem autorizado, caso a caso, a importação de alguns desses itens com laudo e receita médica. Mas os custos ainda são considerados altos –em alguns casos, chegam a US$ 1.500 (R$ 4.800) por mês.
“Como professor, não tenho como pagar isso”, diz Alexandre Meirelles, 49.
Sem ter como custear o produto, ele conseguiu na Justiça que o governo do Rio fornecesse à família o canabidiol para o filho Gabriel, 14, que sofre de epilepsia severa.
O produto não veio. “O Estado alega que não tem dinheiro, que está em crise. Já estou esperando há um ano e cinco meses, mas a doença não espera. Tive que fazer alguma coisa”, relata, sobre a iniciativa de cultivar a Cannabis.
Risco
Em novembro, a família dele e de Margarete Brito, 44, ambas do Rio, também conseguiram o salvo-conduto para cultivar a maconha.
“Se o Estado não pode cumprir esse papel, ele tem que permitir ao menos que nós façamos”, diz Margarete, também presidente da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal.
Há dez meses, ela mantém vasos da planta, cujo extrato é usado para tratar a filha Sofia, 8, que tem a síndrome CDKL5, doença rara que causa epilepsia. Margarete aprendeu pela internet e com outros cultivadores a extrair o óleo.
Em geral, o receio de ter as plantas apreendidas foi o que motivou as famílias a tentar obter o salvo-conduto. A lei não diferencia a quantidade entre tráfico e consumo.
“E se chegar alguém aqui, vão destruir? Tenho que garantir o direito da minha filha”, diz Maria Aparecida.
Segundo ela, desde que a filha Clarian começou a tomar gotas do óleo, em 2014, as crises diminuíram 80%. “Antes, duravam até uma hora. Agora, ela volta em minutos.”
Para Margarete, apesar das decisões abrirem caminho para apoio ao cultivo medicinal, ainda há impasses. “Mesmo que outras famílias entrassem com habeas corpus, elas teriam que importar ilegalmente a semente”, diz. E foi exatamente isso que ela fez.
Universidades
Ao mesmo tempo em que discussões sobre o cultivo da maconha para uso medicinal avançam na Justiça, a análise dos extratos artesanais e importados produzidos a partir da Cannabis começa a ganhar espaço nas universidades.
É o caso do Farmacannabis, projeto da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que visa analisar óleos à base de maconha.
O objetivo é saber qual é, de fato, a concentração de derivados da maconha nesses produtos –casos como o CBD (canabidiol) e o THC (tetrahidrocanabinol), por exemplo.
“Vamos verificar as concentrações dos extratos e ver como está indo o tratamento, ou seja, se podemos associar a resposta ao maior nível de algumas substâncias”, explica a professora-adjunta de farmácia Virgínia Carvalho, que coordena a proposta.
Segundo ela, muitos óleos importados anunciam nos rótulos maior proporção de canabidiol, mas há dúvidas sobre a real concentração.
A dúvida também ocorre porque o THC é visto com ressalva por alguns médicos pelo efeito psicoativo –o canabidiol já tem aval do Conselho Federal de Medicina para uso compassivo em crianças com epilepsia. Há casos, no entanto, em que o THC também tem sido indicado por médicos.
Após as decisões na Justiça, famílias que ganharam o aval para cultivo da maconha iniciaram uma campanha virtual para arrecadar recursos para o projeto da UFRJ. A ideia é obter R$ 60 mil, usados para compra de insumos para análise dos óleos. Já foram arrecadados R$ 17 mil. A ideia é investigar extratos usados em até 300 tratamentos.
Para o neuropediatra Eduardo Faveret, saber as concentrações é importante para o tratamento. “Na epilepsia, se muda um lote e a dose cai até 30%, isso pode gerar uma crise epiléptica e instabilidade”, diz.
Fonte: Massa News