Penso que é um equívoco brutal o que a mídia vem fazendo com este deputado, porque até que seja transitado em julgado ele é inocente (Art. 5, LVII da CF/88). Acontece que Capez, mesmo sendo triturado por parte da mídia, tem muita gente pra o defender – inclusive tem condição de bancar uma mídia paralela pra este fim. Mas e quando a pessoa é pobre? Vou lhes contar um caso que aconteceu aqui no Carnaval de Salvador:
Começou a circular o vídeo de uma vendedora ambulante enchendo garrafas com água de gelo derretido no Carnaval. Viralizou nas redes sociais, sob o alerta de que ela estaria comercializando água mineral adulterada. Como abridor de lata cortando a sua carne, a ambulante, identificada como Edilene, perdeu a mercadoria e teve os filhos pequenos levados pelo Conselho Tutelar. E tudo isto havia imagem pra provar. Poderíamos dizer: Uma imagem vale mais que palavras. Tá comprovado.
Estava mesmo? Estava nada. Foi descoberto que a ambulante estava enchendo as garrafas de água para abastecer os foliões de um bloco chamado Muquiranas, cujos integrantes brincam com aquelas armas de brinquedo que atiram água.
A verdade contradizia as imagens, contradizia “o flagrante” e este fato revelou mais uma vez que Nietzsche estava certo: “Não existem fatos, mas apenas interpretação dos fatos”. A interpretação neste caso da Edilene foi “in dubio pro hell” e a vida dela tornou-se a vida vivida nas profundezas escuras onde o diabo habita.
Conhecemos uma história fantástica para ilustrar o problema do Flagrante, mas antes de contá-la vamos resumir o que é um Flagrante:
Constando no artigo 302 do CPP, o flagrante acontece quando o agente está cometendo a infração penal ou acaba de cometê-la. Assim, se você é pego “com a boca na botija”, então foi dado flagrante.
Logo, a imagem da Edilene enchendo o vaso de água com gelo derretido não deixa dúvidas: culpada. Ok. Vamos à história. Ela foi contada por Santo Agostinho em seu livro “Confissões. Ele conta a saga de um certo Alípio:
“Alípio, pois, passeava diante do tribunal, sozinho, com as tábuas e o estilete, quando um jovem estudante, o verdadeiro ladrão, levando escondido um machado, sem que Alípio o percebesse, entrou pelas grades que rodeiam a rua dos banqueiros, e se pôs a cortar o seu chumbo. Ao ruído dos golpes, os banqueiros que estavam embaixo alvoraçaram-se, e chamaram gente para prender o ladrão, fosse quem fosse. Mas este, ouvindo o vozerio, fugiu depressa, abandonando o machado para não ser preso com ele. Ora, Alípio, que não o vira entrar, viu sair e fugir precipitadamente. Curioso, porém, saber a causa, entrou no lugar. Encontrou o machado e se pôs, admirado, a examiná-lo. Bem nessa hora chegam os guardas dos banqueiros, e o surpreendem sozinho, empunhando o machado, a cujos golpes, alarmados, haviam acudido. Prendem-no, levam-no, e gloriam-se diante dos inquilinos do fato por ter apanhado o ladrão em flagrante, e já o iam entregar aos rigores da justiça.
Coitado de Alípio, não é? Tudo parecia ser, mas nem tudo o que parece é – e, por isto, a presunção de inocência deve ser ponto de partida inclusive quando tudo aponta para um único ponto: um fato inquestionável. Alípio estava no lugar errado e na hora errada, mas não fez nada de errado. Edilene estava no lugar certo, fazendo a coisa certa, mas foi clicada por pessoas erradas.
Em tempos complicados como estes que vivemos onde nem a condenação acontece com o trânsito em julgado – vide HC 126.292 julgado pelo STF que permite prisão após decisão condenatória na 2ª instância – temos que permanecer firmes e fortes contra toda investida punitiva – seja do poder judiciário ou dos juízes do WhatsApp – que tenta enterrar garantias constitucionais e reduzir ao máximo as possibilidades de defesa do acusado.
E sempre que se deparar com um algo que parece ser uma coisa, pare, respire e pense antes de emitir seu julgamento porque, de repente, o único problema na cena que você vê pode ser sua percepção deturpada.
Veja uma matéria no youtube sobre a senhora Edilene