É muito comum a frase: “nada justifica alguém furtar”. Eu sempre digo ao ouvir isto que “só sabe a dor quem sente”. Tito Lívio certa feita disse: “é justa a guerra que é necessária, e sagrada são as armas quando não há esperanças senão nelas”.
Essencial, antes de começar este debate, e julgar, sempre bom lembrar o que dizia Scott FITZGERALD no livro “O grande Gatsby”:
Quando eu era mais jovem e mais vulnerável, meu pai me deu um conselho que muitas vezes volta à minha mente: Sempre que tiver vontade de criticar alguém – recomendou-me –, lembre primeiro que nem todas as pessoas do mundo tiveram as vantagens que você teve.
Sigamos.
Diante da complexidade entre necessidade e ato oriundo desta necessidade surge o chamado Furto Famélico que em tese ocorre quando alguém furta para saciar uma necessidade urgente e relevante. É a pessoa que furta para comer, pois se não furtasse morreria de fome. Famélico vem do latim famelĭcu e significa “passar fome”, literalmente. No entanto, o furto famélico não diz respeito apenas a furtar comida, mas, também, remédio essencial para sua saúde, um cobertor em uma noite de frio, ou roupas mínimas para se vestir, etc.
No furto famélico estamos diante de dois bens jurídicos relevantes: primeiro o bem que fora furtado – comida, remédio etc. – e, de outro, a vida de quem furta. Qual deve ser priorizado nesta questão? Se considerarmos a vida o bem mais precioso a resposta fica fácil.
Decisão recente da Suprema Corte da Itália definiu quefurtar comida não é crime se você for pobre e faminto. Segundo a decisão:
A condição do acusado e as circunstâncias em que o furto de mercadorias aconteceu prova que a posse da pequena quantidade de alimentos deu-se em face de necessidade imediata essencial para a sua nutrição, agindo, portanto, em estado de necessidade.
Esta notícia, que foi publicada em inglês, dá-nos um dado importante: o termo usado para furto de mercadorias é the merchandise theft. Theft, é furto em inglês. Roubo é robbery.
Por que isto é importante? Porque, segundo a nossa doutrina, um dos requisitos essenciais para a configuração do crime famélico é ser furto, nunca roubo. A diferença entre um e outro é: furto (theft) é sem o uso da força física, roubo (robbery) com força física. Se houver violência ou grave ameaça, o direito protegido – vida – passa a estar muito próximo do direito agredido (a vida ou incolumidade física da vítima).
Sobre isto, jurisprudência:
TJ-MA – Apelação APL 0130702013 MA 0001452-43.2011.8.10.0022 (TJ-MA)
Data de publicação: 15/08/2013
I – Em denotando o acervo a prática do crime de roubo, inaplicável o princípio da insignificância, e, tampouco, o reconhecimento de crime famélico, em razão da grave ameaça empregada contra a vítima, pouco importando o suposto valor ínfimo da res furtiva, e, porquanto isso, obstativo o se lhe imprimir de absolvição.
E aí, quem não furtaria para se alimentar ou alimentar alguém que ama? Um filme legal sobre isto “Um ato de Coragem”, com Denzel Washington. No filme,
Um homem comum, que trabalha em uma fábrica e vive feliz com sua esposa Denise (Kimberly Elise) e seu filho Michael (Daniel E. Smith). Até que Michael fica gravemente doente, necessitando com urgência de um transplante de coração para sobreviver. Sem ter condições de pagar pela operação e com o plano de saúde de sua família não cobrindo tais gastos, John Q. Se vê então numa luta contra o tempo pela sobrevivência de seu filho. Em uma atitude desesperada, ele então decide tomar como refém todo o setor de emergência de um hospital, passando a discutir uma solução para o caso com um negociador da polícia (Robert Duvall) e com um impaciente chefe de polícia (Ray Liotta), que deseja encerrar o caso o mais rapidamente possível.
Quem não faria isto?!
Penso que a caridade, que deve tomar conta da nossa formação humana, deve compreender a complexidade da vida e a dor de quem não tem a mínima condição de sobrevivência e parte para um ato tão repugnante como é um furto. Nesta situação ninguém subtrai algo por prazer – mesmo porque que prazer na vida tem alguém nesta situação?
Os magistrados italianos, no voto, deixaram para nós uma grande lição:
O direito à sobrevivência prevalece sobre o direito à propriedade, pois em um civilizado país nem mesmo o pior dos homens devem morrer de fome.
Num mundo extremamente dominado pela desigualdade social e financeira eu, honestamente, não sei como a gente ainda se espanta com o fato de alguém furtar para comer, quando o espanto deveria ser: por que alguém passa fome? Wilhelm Reich provocou em seu livro “Psicologia e Massa do Fascismo, p. 22”:
O que é necessário explicar não é que o faminto roube ou que o explorado entre em greve, mas por que a maioria dos famintos não rouba e a maioria dos explorados não entra em greve.
Há casos e casos, claro, mas é a sensibilidade de ouvir o outro e conviver com quem sofre que nos ajudará a sermos justos.