Em outros artigos já abordei como a crise afeta o servidor público estável, a questão da ilegalidade do parcelamento de salários de servidores, a crise de representatividade, entre outros.
Agora resolvi voltar a atenção à iniciativa privada que tanto tem sofrido com a crise econômica que assola nosso país. Tenho atuado em alguns processos de recuperação judicial como consultor e também como administrador judicial e percebo o quanto as pessoas ainda imaginam que tal processo seja “um bicho de sete cabeças”.
Para desconstruir esse paradigma vamos entender um pouco mais acerca da Recuperação Judicial prevista na Lei 11101/2005.
Considerações Iniciais
Em tempos de crise como a que passamos, muitas empresas, dos mais diversos ramos, estão se vendo obrigadas a fecharem as portas por falta de condições financeiras para continuidade das atividades.
Com isso, empregados são demitidos (na maioria das vezes sem o recebimento de todos os valores que lhe são devidos), os fornecedores dessas empresas deixam de girar suas mercadorias, consumidores deixam de ter acesso àqueles produtos. Toda a cadeia produtiva e de consumo sofrem com o fechamento. Sem contar os entes públicos que deixam de arrecadar os tributos inerentes àquela atividade.
Somente no estado de São Paulo, mais de 4.400 fábricas encerraram suas atividades no ano de 2015 (aumento de 24% se comparado com 2014).
Toda essa conjuntura tem levado empresários a buscarem alternativas a fim de evitarem o fechamento definitivo de suas empresas. Uma dessas alternativas é a recuperação judicial.
O que é a Recuperação Judicial?
A recuperação judicial é o processo que tem por finalidade sanear a situação de crise da empresa. Através dele a recuperanda busca a todo custo a continuidade das suas atividades, mantendo aquela fonte produtiva e buscando cumprir as obrigações junto aos credores de maneira facilitada.
Algumas empresas que passam por problemas econômico-financeiros estão no mercado há muitos anos e a função social que exerce na comunidade em que está inserida é de bastante relevância. É neste ponto que se insere a ideia da recuperação, onde uma espécie de acordo é realizado com os credores para que nem eles, nem o próprio devedor sofram ainda mais com o agravamento da crise.
Como funciona na prática?
Vamos exemplificar:
Imagine uma rede de supermercados que opera em determinada cidade do interior. Possui vínculo com mais de 100 fornecedores diferentes. Possui conta em pelo menos 05 bancos distintos. Conta com 250 empregados.
Este supermercado se percebe em meio a uma crise quando verifica em seus balanços que o seu faturamento caiu de tal forma, que não tem capacidade para honrar os pagamentos no prazo com todos os credores. Não possui linhas de crédito disponíveis, pois já foram utilizadas em outros momentos de fragilidade econômica. Começa a atrasar o pagamento dos funcionários e por aí vai.
Sem adentrarmos em muitos detalhes, é possível afirmar que o supermercado mencionado encontra-se em situação de crise econômico-financeira.
Para piorar a situação, provavelmente vários credores do supermercado já ingressaram com ações de execução para terem seus valores satisfeitos. Os bancos, que normalmente firmam contratos lastreados por garantias reais, já começam a se movimentar para tomada desses bens.
E, neste cenário de caos, a recuperação judicial pode se mostrar como único caminho para salvação da empresa.
Saindo do exemplo e partindo para a prática. Na recuperação, a empresa devedora faz um levantamento completo e detalhados de todos os valores que deve, discriminando, o credor e a natureza do crédito (garantia real, quirografário ou trabalhista) e propõe um plano para pagamento.
Essa proposta é chamada do Plano de Recuperação Judicial, nele o devedor vai estabelecer quais os caminhos que a empresa pretende tomar para se recuperar (vou falar um pouco mais à frente sobre isso) e qual o plano para pagamento dos credores.
Qualquer empresa em crise pode pleitear a Recuperação Judicial?
Não. A recuperação judicial se presta àquelas empresas que possuam viabilidade, que sejam capazes de demonstrar que a crise econômico-financeira pode ser superada, através de determinadas medidas reestruturantes da atividade.
No caso de empresas sem viabilidade a única solução possível é a falência, também regulamentada pela Lei 11101/2005.
Primeiro passo para a Recuperação Judicial
As empresas em geral, sobretudo nos últimos anos, acabam embarcando em uma situação difícil do ponto de vista financeiro, por conta das constantes mudanças no cenário econômico nacional. Empresas que fecham, tributos que continuam em ascensão, diminuição do consumo, alta nas taxas de juros, entre outros. Em alguns locais do país, até mesmo a crise hídrica tem influenciado na dificuldade de empresas que necessitam da água para operar.
Quanto antes a situação de crise for percebida melhor será para o processo.
O primeiro passo é uma completa auditoria para levantamento de todos os valore devidos. A maioria das empresas ao finalizar essa etapa percebem que o débito existente é bem maior do que imaginavam. Isso ocorre, por exemplo, porque muitos contratos firmados e não pagos pontualmente, acabam ocasionando o vencimento antecipado das demais parcelas. Falta de planejamento e de boas práticas de gestão, também estão entre as principais causas.
Realizado o levantamento, chega o momento de peticionar ao juízo o pedido de recuperação judicial.
Petição Inicial
Os requisitos da petição inicial estão previstos no art. 51 da Lei 11101/2005. Vou citar apenas alguns deles para que o texto não fique cansativo: a exposição das causas concretas da situação patrimonial do devedor e das razões da crise econômico-financeira; as demonstrações contábeis relativas aos 3 (três) últimos exercícios sociais e as levantadas especialmente para instruir o pedido, confeccionadas com estrita observância da legislação societária aplicável; relatório gerencial de fluxo de caixa e de sua projeção; a relação nominal completa dos credores, inclusive aqueles por obrigação de fazer ou de dar, com a indicação do endereço de cada um, a natureza, a classificação e o valor atualizado do crédito, discriminando sua origem, o regime dos respectivos vencimentos e a indicação dos registros contábeis de cada transação pendente; a relação integral dos empregados, em que constem as respectivas funções, salários, indenizações e outras parcelas a que têm direito, com o correspondente mês de competência, e a discriminação dos valores pendentes de pagamento; entre outros.
Próximo passo:
Estando tudo em ordem, o juiz DEFERIRÁ o processamento da recuperação judicial e no mesmo ato, nomeará administrador judicial (que funcionará como uma espécie de assessor do juiz para o processo – se tiverem interesse no papel do administrador, coloquem nos comentários e escreverei artigo especificamente para tratar dessa figura) e ordenará a suspensão de todas as ações ou execuções que porventura corram contra o devedor.
Há outras providências a serem despachadas pelo juiz neste momento, conforme art. 52 da Lei 11101/2005.
Importante destacar que o art. 6º §4º da Lei 11101/2005 determina que em hipótese alguma a suspensão acima descrita ultrapassará o prazo de 180 dias contados do deferimento do processamento da recuperação. Contudo, a prática tem apresentado realidade diversa. O próprio STJ já reconheceu a possibilidade de extrapolamento desse prazo tendo em vista a grande demanda enfrentada pelo Judiciário.
Plano de Recuperação Judicial
Após o deferimento do processamento da recuperação, o devedor terá o prazo de 60 dias para apresentação do Plano de Recuperação Judicial. No plano deverão constar:
– A discriminação pormenorizada dos meios de recuperação a ser empregados, conforme o art. 50 da Lei 11101/2005, e seu resumo;
Neste momento o devedor poderá fazer uma proposta para pagamento de todos os credores de uma forma diferenciada: Ex: Pagar os créditos trabalhistas integralmente a partir do primeiro ano da recuperação e pagar os créditos quirografários num prazo de cinco anos, mas com um desconto de 40% no valor total do crédito atualizado.
Lembrando que quem faz essa proposta é o devedor. Ela tem que ser feita dentro de parâmetros razoáveis, pois quem vai aprová-la ou reprová-la são os próprios credores.
O devedor deverá convencer aos seus credores que a proposta é boa e que a empresa realmente possui condições de se reerguer.
Outras medidas devem ser utilizadas também, como a venda parcial dos bens da empresa, a administração compartilhada, o aumento do capital social, etc.
– Demonstração de sua viabilidade econômica;
Neste item a empresa deve apresentar planejamento baseado nas projeções de mercado, mediante a reestruturação proposta no Plano de Recuperação, do faturamento e dos resultados previstos.
O devedor deve demonstrar que a empresa possui viabilidade real de recuperação.
– Laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor, subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.
Assembleia de Credores
A lista de credores apresentada pela recuperanda; organizada e atualizada pelo Administrador Judicial será publicada em edital. Caso algum credor não concorde, poderá apresentar impugnação. Caso seu nome não figure na lista, poderá apresentar habilitação de crédito.
Logo após o juiz convocará assembleia de credores para deliberação acerca do Plano de Recuperação Judicial que será presidida pelo administrador judicial.
Aprovado o plano, a empresa começa a executá-lo. Reprovado o plano, o juiz decretará a falência.
Existe a hipótese do chamado “cram down”. Explico melhor:
– Para o plano ser aprovado, a votação deve respeitar o disposto no art. 45 da Lei 11101/2005
– Se a votação não foi suficiente para atingir o disposto no art. 45 o plano é reprovado. Contudo, o devedor poderá solicitar ao juiz que o aprove, desde que cumpridas as exigências do art. 58 §1º da Lei 11101/2005 (seria a hipótese de aprovação por parcela considerável dos credores). A concessão da recuperação pelo juiz sem aprovação completa do plano pelos credores é chamada pela doutrina de “cram down”.
Considerações Finais:
A recuperação judicial, conforme a própria lei dispõe tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
O princípio que impera é o da “continuidade da empresa”. Neste processo, tanto devedor quanto credores devem agir com muita responsabilidade para que a Recuperação não se transforme em uma meio apenas para postergar pagamentos, o que não é admissível à luz do direito.
Infelizmente não pude adentrar em todos os aspectos do processo, mas espero ter sanado algumas das muitas dúvidas existentes.
Acesse nosso blog: DireitonaRede
Grande abraço a todos!
Por