Por Mariana Py Muniz Cappellari
Pode parecer enfadonho, cansativo e repetitivo falar sobre a pena de prisão, mas em tempos de hiperencarceramento nos parece mais do que salutar discutir a temática, haja vista que no caso do Estado do Rio Grande do Sul contamos com uma população carcerária que ultrapassa a cifra de 35.009 pessoas aprisionadas.
O número por si só já é espantoso, considerando o aumento de mais de 12% em 15 meses, dados referentes ao período de dezembro de 2014 a primeira semana de março de 2016, e isso sem considerar a inexistência de vagas, o que nos tem gerado a inaceitável permanência de presos nas carceragens das Delegacias de Polícia, em viaturas, algemados em uma lixeira em via pública e talvez em contêineres, condições essas desumanas, degradantes, torturantes e vexatórias, tratamento vedado ao Estado, diga-se de passagem, pela própria Carta Constitucional, quiçá pelos Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, ratificados, inclusive, pelo Brasil.
Na semana passada, em Oficina oportunizada pelo Projeto Paz com Voz do Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública do RS, contamos com a presença da Mestra Vera Guilherme, que na mostra de trabalhos acadêmicos, nos brindou com a sua pesquisa sobre o Presídio Central de Porto Alegre, mas desde um olhar de fora, por meio da fila dos visitantes.
Ocorre que o nosso debate perpassou por diversos âmbitos e esferas, suscitando questionamento ao qual em sede de mestrado, já havia formulado na minha dissertação também, pois, afinal, para que serve a pena de prisão, ou, melhor, a quem serve?
Não suscito aqui as justificativas ditas ‘racionais’ dadas pelo Direito, na medida em que não convencem por si sós, nesse sentido as chamadas teorias absolutas ou relativas da pena, tampouco ingresso na esfera da irracionalidade da pena em si mesma, mas suscito a violência produzida pela própria pena de prisão. Afinal, a violência produzida pela própria pena de prisão contribui para a redução da criminalidade ou apenas a fomenta?
Já disse em outra oportunidade, acompanhando Leal, que a prisão na forma posta é um dos principais fatores da criminalidade, uma vez que “a violência não é um desvio da prisão: é a própria prisão.” (CAPPELLARI, 2014). Está aí à criminologia para se deitar sobre os chamados efeitos da prisionização, entre eles, o de natureza social, com a formação de um sistema social anômalo intramuros.
E nesse ponto podemos atentar para uma economia de poder e do crime que vem sustentada pelas facções. Não por menos uma das tantas violações de direitos humanos elencadas na Representação levada ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, no caso do Presídio Central de Porto Alegre, seja a perda do controle interno e do domínio do PCPA pelas facções, a qual, sinale-se, foi objeto de medida cautelar, concedida pela Comissão Interamericana em dezembro de 2013, ainda nesse ponto específico.
Pode ser que seja por isso que eu já tenha sustentado (CAPPELLARI, 2014) que:
Talvez a maior mazela do sistema penitenciário, para além da completa ausência de estrutura e de condições dignas de acolhimento ao preso, seja a total perda do controle interno da prisão por parte do Estado e do domínio deste ambiente pelas facções, eis que apesar da aparente simbiose gerada na relação entre Estado e facções, a mantença e a tomada de poder por parte dessas, frequentemente é fruto gerador das mais assíduas violações de direitos humanos. O Estado ao descumprir os preceitos legais de direito interno e internacional, referentemente a execução da pena, viola os direitos humanos. Ao mesmo tempo, ao permitir a tomada de poder por parte das facções no interior dos presídios, as quais se servirão de estrutura própria, com divisão de tarefas e de regalias, por consequência, perpetua o estado violatório desses direitos, os quais, agora, serão objeto de novas violações, já por parte desse ‘novo’ controle de poder. Resta a questão: quem é mais criminoso? Quem é mais perverso, nesse contexto?
Os altos índices de reincidência estão aí para nos suscitar esse questionamento e, por outro lado, não podemos deixar de trazer a tona o que sustenta WACQUANT (2007), quando analisa a Onda Punitiva nos Estados Unidos, apontando para o fato de que o encarceramento serve para neutralizar e estocar fisicamente as frações excedentes da classe operária, os chamados despossuídos ou estigmatizados.
Sendo que a expansão da rede policial, judicial e penitenciária do Estado desempenha uma função econômica e moralmente inseparável de imposição de disciplina do trabalho assalariado dessocializado, reafirmando a autoridade do Estado e a vontade reencontrada das elites políticas de enfatizar e impor uma fronteira entre os ‘cidadãos de bem’ e os ‘desviantes’.
Com o referido autor ainda verificamos que a penalização serve é mesmo como uma técnica de invisibilização dos problemas sociais, por isso a ‘reabilitação’ passa a ser suplantada pela chamada abordagem gerencial, centrada esta última na gestão contábil dos estoques e fluxos carcerários, totalmente preocupada com os custos econômicos e financeiros apenas. A ideia é de controle das populações perigosas e quando isso não acontece; de estoque dos mesmos em separado, haja vista a indigência dos serviços sociais.
Wacquant (2007, p. 247) dá conta de que esta mudança de procedimento e de resultado traduz-se no abandono do ideal de reinserção, passando a prisão a servir, nessa ótica, para isolar e neutralizar categorias desviantes ou perigosas por meio de uma vigilância padronizada e de uma “gestão estocástica dos riscos, cuja lógica evoca mais a pesquisa operacional ou a retirada dos “dejetos sociais” do que o trabalho social.”
A prisão, assim, e, então, centra-se no primeiro plano, na medida em que é o meio mais simples para a restauração da ordem e para o julgamento de todos os tipos de ‘problemas sociais’ existentes. A imagem que assim subjaz, inclusive, no interior da sociedade civil, é a de que o encarceramento deve voltar a ser o que era antes, em sua origem, propriamente falando, ou seja, um sofrimento, que deve ser maior e mais longo quanto mais grave for o crime cometido (WACQUANT, 2007, p. 296).
Às vezes sinto-me como o personagem Dr. Simão Bacamarte de Machado de Assis, quando suscito a discussão em torno da pena de prisão: sou eu a alienista? Ou, quem são os alienistas? Precisamos muito falar sobre a pena de prisão, pois é fato, também, que a ampliação da sua aplicação não tem contribuído para a redução da criminalidade, pelo contrário, e algo precisa ser feito, ao menos nesse ponto acredito que todos estejam de acordo.
REFERÊNCIAS
CAPPELLARI, Mariana Py Muniz. Os Direitos Humanos na Execução Penal e o Papel da Organização dos Estados Americanos (OEA). Presídio Central de Porto Alegre, Masmorra do Século XXI. Porto Alegre: Núria Fabris, 2014.
WACQUANT, Loic. Punir os Pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. A Onda Punitiva. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
Fonte: Canal Ciências Criminais