O tema políticas de cuidado vem ganhando destaque no Parlamento brasileiro e é considerado prioritário pela bancada feminina. A Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados criou dois grupos de trabalho (GTs) para tratar do tema: um propriamente sobre políticas de cuidado e outro para discutir a ampliação da licença-paternidade.
O assunto também tem mobilizado o Poder Executivo, que enviou recentemente à Câmara dos Deputados um projeto de lei que institui a Política Nacional de Cuidados (PL 2762/24). O texto foi construído com a participação de 20 ministérios, além de integrantes de estados, municípios e pesquisadores.
De acordo com a Constituição, os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores de 18 anos, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Mas hoje, no Brasil, quem cuida em geral é a mulher.
Segundo o IBGE, em 2022, enquanto as mulheres dedicaram, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas, os homens gastaram 11,7 horas, cerca de 10 horas a menos por semana. As mulheres pretas ou pardas dedicaram 1,6 hora a mais por semana nessas tarefas do que as brancas.
Cuidar custa não apenas tempo, mas também desgasta a saúde de quem cuida e pode gerar a perda de oportunidades no mercado de trabalho. Ainda conforme dados do IBGE, em 2022, a taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho foi de 53,3% enquanto a dos homens foi de 73,2%. Também em 2022, o rendimento delas foi, em média, equivalente a 78,9% do recebido por homens.
Para alterar o quadro atual de sobrecarga das mulheres, especialistas têm apontado a importância das atividades de cuidado serem compartilhadas entre membros da família, o Estado, o mercado privado e a comunidade.
Projeto do governo
Além de reduzir a sobrecarga de trabalho das mulheres, o PL 2762/24 tem como objetivo garantir o acesso ao cuidado de qualidade para quem dele necessita, prioritariamente crianças e adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência. A proposta também pretende garantir condições de trabalho decentes para trabalhadoras e trabalhadores remunerados do cuidado, que são sobretudo mulheres negras.
“É um trabalho extremamente precário, apesar de sustentar a nossa organização social. Os cuidados têm uma importância tanto quantitativa, porque são quase 6 milhões de pessoas [dedicadas a esse trabalho], 90% delas mulheres, quanto qualitativa, porque a gente se organizou contando com esse trabalho”, explica Luana Pinheiro, diretora de Economia de Cuidado na Secretaria Nacional da Política de Cuidados do Ministério do Desenvolvimento Social.
Ela acrescenta que trata-se de uma força de trabalho ainda muito informal e com poucos direitos. “Menos de 30% possui carteira de trabalho assinada, muitas trabalhadoras recebem menos que o salário mínimo e ainda têm de conviver com casos de assédios morais e sexuais. Há casos de trabalhadoras que são resgatadas de situações que a gente chama de escravidão contemporânea”, afirma Luana.
A representante do Ministério do Desenvolvimento Social diz ainda que hoje a maior parte da provisão de cuidados no País está a cargo das famílias, mas a responsabilidade precisa ser compartilhada com os governos.
“O Estado ainda é insuficiente – a gente está construindo uma política para que o poder público possa assumir a centralidade – e, por isso, as famílias muitas vezes recorrem também à contratação de trabalhadoras domésticas e cuidadoras para suprirem as suas necessidades de cuidado”, explica Luana. “Essa demanda só é satisfeita pelas camadas mais altas da população, que conseguem fazer a contratação no mercado desses serviços, que é também um mercado majoritariamente feminino”, complementa.
GT da Câmara
Na Câmara, já tramitava um projeto de lei (PL 5791/19) da ex-deputada Leandre (PR) que cria uma política nacional de cuidados para pessoas vulneráveis. E, no Senado, uma proposta (PL 27972/22) da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) tem o mesmo fim.
Mas a relatora do grupo de trabalho sobre política de cuidados na Câmara, deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP), afirma que o foco das discussões é o projeto enviado pelo governo. Ela ressalta que esse é um dos poucos temas que, de fato, une a bancada feminina na Câmara. No GT, há deputadas do Psol ao PL.
“O nosso objetivo, em primeiro lugar, é criar condições para aprovar o PL 2762/24. Depois, queremos avançar também em outros projetos de lei que tem o mesmo tema, por exemplo, o que cria o Fundo Nacional do Cuidado, ou seja, possibilita fontes de financiamento para estruturar essa política”, diz a parlamentar.
Sâmia acrescenta que é necessário reconhecer o cuidado como algo que precisa ser coletivizado. “Estabelecer uma política de creches no País é uma forma de responsabilizar o Estado e a sociedade pelo cuidado das crianças. Também é preciso criar espaços de socialização de idosos e flexibilizar a jornada de trabalho de mães atípicas (que possuem filhos com alguma deficiência física ou intelectual)”, aponta.
Outras propostas
Também está no radar do GT da política de cuidados o projeto (PL 638/19) da deputada Luizianne Lins (PT-CE) que inclui o trabalho não remunerado do cuidado no sistema de cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) e a Proposta de Emenda Constitucional 14/24, que prevê a inclusão na Constituição do cuidado como um direito social, ao lado da saúde, da educação e de outros direitos.
A chamada PEC do Cuidado também foi construída por uma coalizão de parlamentares de espectro político variado. A deputada Flávia Morais (PDT-GO), autora principal da proposta, afirma que a PEC é estruturante e, se aprovada, embasará os outros projetos e as políticas públicas sobre cuidado.
Ela destaca que a PEC tem apoio de toda a bancada feminina na Câmara e também do governo e lembra que o tema já está sendo discutido na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e foi tratado como prioritário no P20 – a reunião de Mulheres Parlamentares do G20, que ocorreu em julho em Maceió.
“Hoje é um tema mundial, eu estive na OIT e lá foi muito falado do cuidado, assim como no P20”, comenta Flávia Morais. “Pela primeira vez, o governo federal tem a Secretaria Nacional do Cuidado, hoje representada pela secretária Laís Abramo, que inclusive tem um protagonismo muito importante na OIT”, complementa.
Envelhecimento da população
A pesquisadora Ana Amélia Camarano, organizadora do livro Cuidar, Verbo Intransitivo, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), observa que hoje, como é feito no ambiente doméstico, o trabalho de cuidado é invisível, não é valorizado e não gera direitos sociais. No entanto, uma política pública de Estado para o cuidado tende a ser cada vez mais necessária no Brasil, com a mudança de perfil das famílias e com o envelhecimento da população. O último censo do IBGE mostra que, em 2050, quase 23% da população terá 60 anos ou mais. Atualmente, os idosos já respondem por mais de 15% dos brasileiros.
Ana Amélia Camarano lembra que as famílias têm menos filhos, há cada vez mais casais que optam por não ter filhos e os casamentos acabam mais rápido. E, quando você tem muitos casamentos, a tendência é que os vínculos sejam mais fracos. “Quem tem muita sogra não vai cuidar de nenhuma, então é importante, por isso, a política de cuidados. Você tem menos filhos, casais que não têm filhos: enquanto aumenta a população que demanda cuidados, diminui a oferta de cuidador familiar“, explica.
A alternativa também costuma ser um cuidador formal contratado no mercado, mas nem todas as famílias têm renda para arcar com esse custo. A pesquisadora do Ipea cita iniciativa da Prefeitura de Belo Horizonte que encaminha para as famílias de renda mais baixa um cuidador domiciliar contratado pela prefeitura para ajudar nas atividades de cuidado do idoso e do dependente, para que o cuidador familiar principal possa ter pelo menos uma folga. Ela lembra que a legislação brasileira é “punitivista“ no caso do cuidado: o serviço não é oferecido amplamente pelo Estado, mas se uma pessoa abandona o pai no hospital, por exemplo, pode ser punida. Daí a importância de se investir em políticas públicas de cuidado.
A pesquisadora do Ipea ressalta que, no caso do cuidado das crianças, as creches não podem ser apenas um serviço de educação, devem ser também um serviço de cuidado. “O que significa isso? Que a instituição tem que funcionar no contraturno, ela tem que funcionar de manhã, de tarde e de noite, ela tem que funcionar nas férias, porque a mãe e o pai que trabalham não vão poder cuidar”, afirma.
Licença parental
Ana Amélia Camarano considera importante também a divisão de tempo na licença para cuidar de crianças, como ocorre nos países escandinavos, como Dinamarca, Suécia e Noruega, que preveem licenças compartilhadas entre pais e mães.
“Nesse modelo, quando nasce uma criança, você tem um mês de licença para pai e mãe, que é a chamada licença parental para os pais. Depois, você tem mais uma licença de mais 13 meses, que ela pode ser compartida, entre pais e mães, uma hora sai o pai, outra hora sai a mãe, porque hoje em dia uma pessoa sair 12, 13 meses do mercado de trabalho, mesmo que ela tenha o emprego garantido, quando ela volta, ela não acompanhou as mudanças tecnológicas, ela vai ter problemas de promoção, perdeu a promoção”, salienta.
Estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta que quase metade das mulheres que usufruem da licença-maternidade no Brasil perde o emprego em um ano após retornarem ao trabalho, sendo que a queda no emprego se inicia imediatamente após o período de estabilidade no emprego garantido pela licença – ou seja, um mês após o retorno da mãe ao trabalho.
Ampliação da licença-paternidade
Embora na Câmara dos Deputados já esteja em análise um projeto de lei prevendo a chamada licença parental (PL 1974/21), o debate principal ainda está focado na regulamentação da licença-paternidade.
A Constituição Federal estabelece que a licença-paternidade é um direito de todos os trabalhadores, sendo que a duração da licença seria de cinco dias até que lei posterior a regulamentasse. Essa regulamentação nunca aconteceu, e é justamente o foco do Grupo de trabalho da Secretaria da Mulher da Câmara pela Regulamentação e Ampliação da Licença, coordenado por Tabata Amaral (PSB-SP).
A deputada apresentou, juntamente com outros 16 deputados, um projeto de lei (PL 6216/23) para regulamentar a licença-paternidade no Brasil, prevendo prazo inicial de 30 dias, que gradualmente chegará a 60 dias de licença, em um prazo de cinco anos, com direito ao salário integral custeado por recursos do Estado, como já ocorre no caso da licença-maternidade. O salário-paternidade valeria também para os casos de adoção e será um benefício devido aos segurados da previdência social.
“É importante salientar esse não vai ser um custo que vai ser repassado às empresas, porque a gente entende que isso traria uma resistência muito maior ao projeto”, observa a coordenadora de pesquisa do Observatório Nacional da Mulher na Política na Câmara, Ana Claudia Oliveira, que assessora o GT.
“Então, é um custo que vai para o Estado e que representa um percentual muito baixo, se nós formos olhar para todo o orçamento do INSS, para todo o orçamento da Seguridade Social”, completa.
O PL 6216/23 tramita apensado ao Projeto de Lei 3935/08, do Senado, que fixa em 15 dias consecutivos a licença-paternidade, tanto para o pai biológico quanto para o adotivo, e a mais outras 100 propostas. Será criada uma comissão temporária pela Mesa Diretora da Câmara para analisar esses textos.
Impacto no mercado de trabalho
Hoje a licença paternidade, de 5 dias, é 24 vezes menor do que a licença-maternidade, de 120 dias. Segundo Ana Paula Oliveira, ter uma licença tão diferente para homens e mulheres afeta muito a mulher no mercado de trabalho, por exemplo, porque alguns empregadores resistem em contratar mulheres na idade fértil. “Existe também um fator de descriminação que se associa às mulheres, por elas serem as principais cuidadoras”, frisa.
Conforme Ana Claudia, estudos em países que têm licença para pais mais estendida ou licença parental em período estendido demonstram que essas ferramentas se mostram importantes, pois o vínculo estabelecido nesses primeiros meses de cuidado se estende para o resto da vida.
“Ao se vincular com os filhos desde o nascimento, cuidando efetivamente desses filhos, passando horas do dia com eles, dando banho, dando alimentação, enfim, cuidando deles no momento do sono, e não sendo só um segundo cuidador, o envolvimento do pai fica mais efetivo”, destaca.
Além de impactar o vínculo dos pais com os filhos e a empregabilidade da mulher, uma licença mais igualitária tem consequências também sobre os filhos. A pesquisadora avalia que, com a divisão de tarefas, a criança terá pais e mães mais descansados e, logo, mais preparados para o cuidado.
Todos os especialistas ouvidos destacam que, para que o cuidado deixe de ser uma tarefa só feminina no Brasil, é preciso sobretudo uma mudança cultural.