Os possíveis impactos da futura decisão do Supremo Tribunal Federal sobre os critérios para a demarcação de terras indígenas foram alvo de intenso debate na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados nesta quinta-feira (4). No dia 7 de junho, a corte vai retomar o julgamento do chamado “marco temporal”, que só permite a demarcação de áreas que já estavam ocupadas por indígenas até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
O governo Lula, que acaba de homologar seis novas terras indígenas após cinco anos de paralisação nas gestões anteriores, espera a derrubada da tese do marco temporal. As áreas são Arara do Rio Amônia (AC), do povo Arara; Kariri-Xocó (AL), do povo Kariri-Xocó; Rio dos Índios (RS), do povo Kaingang; Tremembé da Barra do Mundaú (CE), do povo Tremembé; Avá-Canoeiro (GO), do povo Avá-Canoeiro; e Uneiuxi (AM), do povo Maku Nadëb.
O secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, Eloy Terena, defendeu a prevalência de outra tese: a do “direito originário” nas terras tradicionalmente ocupadas. “Nós estamos trabalhando para destravar muitos outros procedimentos de terras indígenas que estão parados. A orientação do Ministério dos Povos Indígenas é fazer a promoção da política indigenista, fazer a proteção do território e cumprir a determinação constitucional de demarcar e proteger as terras indígenas”, disse. “É claro que queremos fazer isso com segurança jurídica, observando o rito demarcatório e o devido processo legal, além de seguir as orientações jurisprudenciais consolidadas no Supremo”.
Eloy Terena lembra que a Constituição já estabelece os critérios para a definição de “terra indígena tradicionalmente ocupada”. Eles dizem respeito às áreas necessárias à habitação permanente, reprodução física e cultural, preservação de recursos ambientais e manutenção das atividades produtivas e do bem-estar dos povos. Para o governo, a fixação de um marco temporal em 5 de outubro de 1988 inviabiliza novas demarcações e abre a possibilidade de questionamento das terras já homologadas.
Agronegócio
Visão totalmente oposta foi manifestada pelo produtor rural Norberto Junior, vereador na cidade de Brasnorte (MT). “O município de Brasnorte já tem 10,1% do seu território demarcado, homologado e tradicionalmente ocupado pelos povos com base no 5 de outubro (de 1988). Isso tem que ser respeitado. Mas, em 2002, 2007 e para frente, entraram estudos de ampliação dessas reservas, tirando o direito constitucional de produtores que têm escritura e certidão e que estavam lá muito antes da homologação das áreas. Mato Grosso não vai admitir ampliar ou criar mais um milímetro de reserva indígena. Estaremos juntos com todo o agronegócio e a nossa população lutando”, garantiu.
Vários parlamentares ligados ao agronegócio discursaram com críticas aos critérios de demarcação e até denúncias de supostas fraudes nos estudos técnicos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que orientam o processo de criação de terras indígenas. O deputado Pezenti (MDB-SC) vê riscos de agravamento dos conflitos no campo em caso de derrubada no marco temporal.
“Se o STF, em uma ação arbitrária, acabar com o marco temporal, os povos indígenas – ou, então, as ONGs que têm utilizado os povos indígenas como massa de manobra – poderão requerer mais áreas. Mas poderão perder também. Ou vocês acham que as investidas virão só de lá para cá? O impasse pode resultar em um banho de sangue em todo o nosso Brasil”, considerou.
Propostas
A deputada Caroline de Toni (PL-SC) apresentou proposta (PL 1740/23) de submeter a votação, no Congresso Nacional, as homologações de terras indígenas feitas pelo presidente da República. O deputado Zé Trovão (PL-SC) também protocolou projeto de lei (PL 1654/23) para exploração econômica dos recursos naturais em terras indígenas, com teor semelhante à proposta encaminhada no governo Bolsonaro (PL 191/20).
Proteção
Já o deputado Ivan Valente (Psol-SP) rebateu as ações contra as demarcações e defendeu a derrubada da tese do marco temporal.
“Ao se discutir a questão do marco temporal, pretende-se inviabilizar as demarcações das terras indígenas, possibilitar à União a retomada de áreas reservadas aos indígenas quando verificada a alteração de traços culturais da comunidade e retirar a proteção das terras adquiridas por meio de compra e venda. O STF deve dar um não ao marco temporal e decidir de vez”.
Organizador da audiência na Comissão de Agricultura, o deputado Coronel Assis (União-MT) ressaltou a necessidade do debate desse tema no Parlamento. “Acredito que o foro ideal para essa discussão de ambos os lados é justamente a Câmara dos Deputados. Afinal, os impactos serão de grandes proporções no setor produtivo e também na segurança jurídica do país”, disse.
O STF analisa o caso por meio de recurso extraordinário (RE 1.017.365) de 2016, que trata de um processo de reintegração de posse movido contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. A decisão terá repercussão geral, ou seja, passará a orientar o julgamento de conflitos semelhantes em todo o país.